quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Dragão envelhecido

Uma tatuagem
inscrita no braço
não demorou muito.

Anos se foram
e a tatuagem ficou
e envelheceu
e fora de forma ficou
totalmente amassada
que não lembra mais
sua juventude
belo e formoso
de patas armadas
e de olhos de fogo.

O fogo apagou
as patas amoleceram
e acabaram morrendo
junto ao braço.

Na passagem do ano

Temos a mais insensata
ilusão
de que este ano
pode ser diferente
e bom
se não somos bons
realmente
se continuamos
patinando numa lama
escorregadia da ignorância
e continuamos a repetir
sempre
movimentos de sempre
um bailado sinistro
vestidos de palhaço.

Patinando na lama

Temos a insensata ilusão
que crasso na alma pequena
quando a roda da roda-viva
gira uma roda inteira
como que na próxima rodada
tudo fosse diferente
e a vida fosse diferente.
Se nenhuma mudança faça
nem fora
nem dentro
deste corpo cada vez mais estúpido
que nada mais fez
e deixa de fazer
do que reclamar
dos outros
dos corvos
que indiferentes a tudo
apenas esperam
a roda girar.

Surfista das tormentas vividas

Cada vez mais passageiro
de passagem se torna o tempo
sem que possamos deter
por um instante sequer
as rugas alongando-se
pelo rosto inteiro.

Rugas que sempre
existiram no tempo futuro
do jovem que dança
e balança numa prancha
de surf
equilibrando-se
para não cair.

Mas continuamos ainda
numa prancha
muito mais hábil
do que ontem
contornando golfinhos
e brincando com os
tubarões
sem cair
e caindo sempre
para cair de novo
e de novo deixando-nos conduzir
como Ulisses
pelas sereias
as mesmas que devoravam
as almas dos homens
transformados todos
em carneiros a balir
encantados pela lua.

Sem correção
errando em direção
dum abismo
em que as lavas
de um vulcão
prestes a explodir
consolam diante
dos perigos desta vida
ilusória e maldita
mas vivida intensamente
seus pecados todos
bebidos todos num cálice
de prata.

A nau dos desvairados

Para atravessar um canal
revoltoso
de tempestades
numa nau uma multidão
procurava chegar
ao outro lado.

Da multidão surgiram
revoltas e guerras
amores e filhos
desamores e desaforados.
Alguns eram bons
outros eram maus
outros médios
eram meio bons
eram meio maus
alguns alumbrados
alguns faziam terapia
outros psicanálise
outros ainda nada faziam
senão falar da vida dos outros
só para mostrar que faziam
alguma coisa.

Mas quando soprou um furacão
não importava mais
a condição de cada um
nenhum outro lugar tinha
para ir senão
para o centro da nau
e rezar juntos para a nau
não afundar.

Nenhum outro lugar
tinha.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Uma febre amorosa

Uma patologia
amorosa era
que patologicamente
conheceu a felicidade.

Um dia um especialista
curou a patologia
e da patologia se livrou
conheceu a infelicidade.

Uma banda tocava

Quebrando a monotonia
das ruas
daquela pequena cidade
pequena era a curiosidade
dos que saíam pelos portões
para escutar
uma banda tocar.

Havia duas bandas
uma que portava vestimenta
preta
ou era azul escuro
uma outra
de branco
impecavelmente branco
e que tocavam
enquanto marchavam.

Muito se foi
a cidade pequena cresceu
a banda se tornou
notícia do mural
do museu municipal
que um dia uma banda
tocava
pelas ruas da cidade.

Havia uma banda
que tocava.
Havia duas bandas
que tocavam...

Caixinha de música

Um dia quebrou
a velha caixa de música
e nunca mais tocou.

Definitivamente
aquela melodia triste
deixou de existir.

Nenhuma outra música
foi tocada
e a caixa quebrada
nem sei para onde foi.

Nem música triste
nem qualquer outra música
e o mundo emudeceu.

O padre do bumbo

Pelas ruas da cidade
havia um padre
havia um bando de crianças
e uma tocando bumbo
que ia na frente.

Era o padre que recolhia
as crianças
e levava para a missa das oito.
Era o padre que queria
um público para a salvação.

Quando o padre aparecia
todos iam atrás do padre.
Apenas eu o ignorava
não queria saber do padre
nem da salvação.
Nem fui salvo nestes dias
nem nos outros
apenas vivia
com o padre tentando
salvar o mundo.
Imenso mundo que cabia
no bumbo do padre.

Numa estrada torta

O que se pode dizer
de si mesmo
senão uma breve
lamentação.

Não fui sapateiro
borracheiro não fui
Não fui eletricista
nem metereologista
guitarrista de uma banda
de rock
como existia nas garagens
de minha adolescência.

Meus amigos se foram
meus amores se foram
meus sonhos também.
Só me restou o caminho
das estrelas
em que nada encontro
senão uma poeira fina
de meus pés mesmos
num rastro apagado
atrás de mim.

De fato fui
errado
fui mal e malcriado
fui um pau torto
que nunca tomou jeito
nem se endireitou
pois não havia jeito
sujeito a vagabundice
literária
das letras descompostas.

Castelos de areia

Um castelo de areia
de areia molhada
da água do mar.

Um castelo de areia
em que brincavam
juntos um menino
juntos uma menina.

Brincaram a manhã toda
brincaram a tarde toda
e não deixavam que a água
salgada que havia adiante
carregasse
um castelo de areia.

Até que
de tanto brincarem
no mesmo castelo
na mesma brincadeira
a menina resolveu ir.

Mas antes
pediu sua parte
do castelo de areia
daquela brincadeira.
Nada tinha a ser levado
da parte do castelo
foi quando resolveu destruir
uma parte dela mesma
pois nada daquilo pertencia
ao menino.

Um castelo danificado
foi o que restou
daquela brincadeira
e a menina se foi
e o menino ficou
com as ruínas
que fora um dia
um castelo de areia.

Colonização por todo lado

Cuidado com a Coca-cola
colonização americana.
Cuidado com o Carrefour
colonização francesa.
Cuidado com a Nestlê
colonização suiça.
Cuidado com a Wolkswagen
colonização alemã.
Cuidado com a Honda
colonização japonesa.
Cuidado com a Samsung
colonização coreana.
Cuidado com a Capoeira
colonização africana.
Cuidado com a loira
colonização catarinense.
Cuidado comigo
colonização de minhas palavras.
Cuidado com a colonização
pois será tudo
será o mundo
e o mundo será
tão pequeno
que caberá no coração
cidadão do universo.

Onde quer que esteja
será a sua pátria.
O que quer que coma
será seu alimento.
O que quer que pense
será seu pensamento
colonização do mundo.

Por uma cabeça perdida

Um homem havia a muito
que perdera sua cabeça
procurou de um lado
no lado esquerdo não havia
não havia no lado direito
e onde quer que pudesse
procurar.

Por fim achou uma
não era a sua
não se importou com
isso.
Ficou com aquela cabeça
uma cabeça de papelão
não se importou com
isso.

A cabeça de papelão
de tanto pensar
incendiou-se
e foi-se de vez
a cabeça de papelão.
Buscou outra cabeça
a cabeça que encontrou
era a cabeça de um
cabeça dura
cabeça de pedra.
Melhor do que a outra
cabeça de papelão
cabeça de pedra
que de tão dura
mais dura ficou
trincou por pensar
demais
demasiadamente
dura por pensar.

Procurou por outra
uma cabeça mole
uma cabeça de maria
mole
que de tão mole
amoleceu todos
os neurônios
os plutônios
os parafusos
e derretou.

Toda cabeça encontrada
não lhe servia
e assim resolveu ficar
sem cabeça alguma
e quando precisasse de uma
qualquer uma
poderia lhe ser útil.
Inútil seria buscar uma cabeça
que fosse
que fosse somente sua.

Nem das cabeças somos
donos!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A violência diante da beleza

Podemos viver todas as emoções
Senão seríamos insensíveis.

Mas nada mais belo
Do que na emoção mais violenta
Nenhuma palavra violenta
Nenhuma ação violenta
Nenhum sinal violento no rosto
Nem no canto da boca
Nem nos olhos
Cuja menina dos olhos
Placidamente contempla
Apenas contempla.

Nada mais violento
Do que a beleza
Que violenta
Aqueles que se derramam
Em lágrimas
Diante de um perigo
De um movimento quase parado
Que sugere
Apenas sugere.

Em busca de uma causa

Pode ser qualquer uma
Em defesa disso
Por ser outra coisa
Em defesa daquilo
Pode ser do contra
Contra alguma coisa
Qualquer coisa
Discriminação
Discrição
Diletantismo.

Contra os livros
E a favor das matas
Contra a erotização
E a favor da repressão corporal
Contra o sacrifício dos animais
E a favor da alimentação vegetal
Que pode se explorado...

Em defesa dos cachorrinhos
Explorados pelos seus donos
Que precisa tomar banho
Usar sapatinho
E andar de coleira
Como um palhacinho
Sem poder ser livre
(Um cachorro nunca é livre)
A liberdade existe
Apenas para os homens
(E também mulheres)
Senão seremos acusados
De discriminação!
Para escolher o lado
Do contra
Do favor
Do contra ao contra
Do favor ao contra
Do favor a não ter preferência
Por qualquer lado que seja.

Estragos depois das águas

Continua a causar estragos
As ondas do tsunami
Que invadiram as terras
As mentes invadidas
Enlouquecidas
Perdidas pelas ruas
Sem nenhum rumo
Cujo rumo que tinha
Desfez-se no primeiro instante
Quando as águas retornaram
Salgando toda a terra
Para que não nascesse mais
Nem ervas daninhas
Para que não nascesse mais
Nem ervas boas
Para curar a ressaca
Que continua ainda
Enlouquecendo
Ainda

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Quando a bola caiu

Uma bola de tênis
Batida
Rebatida
Num vai e vem
Num saque mais rápido
Mais rápido se fez.

Cruzando os ares
Por cima da rede
Sem cair
Mas há de ser um dia
Mais cedo
Mais tarde
Há de cair.

Não se sabe
De que lado
Daquela rede
A bola caiu!
E perdeu.

Mas o que importa
Isso?
O importante é bater.

Por falar em amor

Quando passava ela
Maltratava
Ela
Não olhava na cara
Simplesmente a ignorava
Não dava boa-noite
Nem me despedia
Nem bom-dia
E quanto mais
Maltratava
Era dela que gostava
Mas não queria
Dizer isso
Ela sabia...
Ela sabia...
Até que ela se cansou
Até que ela se foi
E não voltou
Ele sabia...
Ele sabia...

Uma fuga frustrada

Pensei um dia me retirar
Ir para longe
Fui para a Amazônia
Fui também a Patagônia
Não fiquei muito tempo
E voltei
Ainda que tivesse ido
Nem um passo foi dado
Do lugar em que sempre
Me encontrei
Nunca saí do lugar

Retorno não acontecido

Foi onde nasci
Pelas ruas desconhecidas
Andava
E nada via
Nem se lembrava
Que um dia
Por lá passara
Uma vida inteira
Até que um dia saí
De lá
Voltei outras vezes
Não conhecia mais ninguém
Alguns tinham morrido
Outros também saíram
Só que penso agora
Nunca estive lá

Esconde esconde

Nem todas as pedras
Machucam
Nem todas as palavras
Ferem
Por trás de cada palavra
Outra bem diferente
Diz a verdade
Como pudesse somente
Ser conhecida
Por aquele que lê
Na transparência das paredes

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Por uma questão de maldade

Sem orgulho algum
De sua natureza
O escorpião pica
O outro
Que embriagado
Pelo veneno
Vive para contar.

Quem morre
Sempre
É o escorpião
Que morre calado
Pois sempre o vilão
Deve morrer no final.

Sem se esquecer

Que me importa a indiferença
Sempre me importarei
Distante ainda
Nunca estará
Abrigada estará
Numa mente perdida
Nas geleiras
Mais profundas
Da existência
Lá no fundo
De uma casa de barro
De joão-de-barro
Mas não conte isso
Para ninguém...

Bate coração...

O que você tem agora?
- Arritmia
Que nem sabia o que era
Que motivos
Tinha
Para ter
Arritmia
Fora de compasso
Errando os passos
Batendo descompassado
Um coração maltratado
Que maltratou também
Por isso bate
Bate em ritmo incerto
Bate falho
Uma batida errada
Como sempre bateu
Como bateu antes
Como bateu depois

Criador de mentiras

Por tudo que tenho dito
Pouco se diz da realidade
Talvez sejam mentiras
Ditas como fossem verdades
Que para o poeta
Daquele construtor de imagens
Tornam-se verdades
Para que o tédio da realidade
Não torne o mundo
Demasiadamente formado
Conforme as formas
Das linhas retas e pontos certos
Ao invés
O que me atrai
São as linhas tortas
Naturais
De uma árvore tortuosa
Uma nuvem se desfazendo
Outra se fazendo
Naquilo que o olho percebe
O olho que sabe versejar

Quando a sombra se desfaz

O que realmente as palavras revelam
Se realmente revelam
Revelador seriam as palavras ditas
No auge de maior patologia
Senão uma patologia que revela
Os poros explodindo
Na insanidade dolorosa
Dos amores vividos
Que na errância desta vida
Apenas podemos viver sonhando
Numa fluidez que nenhuma forma concreta
Se mantém
Logo se desfaz em espuma
Na correnteza que tudo
Transforma
E carrega para o mar
Salgando e dando gosto

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Destruindo lembranças

Os monumentos derrubados
Não servem para nada
Senão para ser totalmente
Pisoteados
Para que não deixe
Nenhum vestígio
De um passado
Em que a ilusão ainda
Existia
Nada existe mais
Nada mais do que
Desilusão.

Não esquecemos Fukushima

Se pudesse escreveria
Uma oração apenas
Silenciosa
Sem muitas palavras
Para consolar
Aqueles que morreram
Aqueles que viveram
Para contar
Das águas que varreram
Os arrozais
Negra água da destruição
Fukushima
Fukushima jamais será
A mesma
Após março
Submersa em nossos corações
Cujas lágrimas ainda
Continuam caindo
E inundando ainda
Até que o esquecimento
Possa enfim
Enterrar os mortos
E fazer viver os vivos
Que continuam em seus barcos
Flutuando de um lado para outro.

Quintal em desalinho

Quem foi que soprou aqui?
Quem foi que soprou aqui?
Após varrer todo o quintal
As folhas recolhidas
Novamente se espalharam
Novamente ponho-me a varrer
O quintal de minha mente
E quem sabe sopre de novo
O sopro do meu coração!
O sopro do seu coração!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Altar da pressa

Galhos imensos
Hasteados ancestres se
entrelaçando como dedos

O calor incolor do sol
e um céu de clorofila

Mastreando o pescoço
feito árvore grandona
Ponteando surge o fruto
hora verde, hora maduro
hora verde, hora maduro

Altar da pressa.
Luminoso sinal.

Há quem olhe e pare
e há quem corra, só de ver
este fruto de olhar

domingo, 27 de novembro de 2011

Pelas vias da incerteza

Muito me diz
Este silêncio opaco
Deixando um rastro
De quem passou por aqui
Em cuja incerteza
Ainda paira o fantasma
Do medo
De ser mais uma vez
Verdadeiro
Em todo seu instinto
Marcando a pele
O dente canino
De sempre desejado

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Numa sala da farmácia

Numa farmácia popular
Havia numa garrafa
De minha infância
Uma cobra verde.

Ela vivia naquela garrafa
Mergulhada no formol
Nunca saia de lá
Fingindo-se de morta
Sem se mexer
E de olhos redondos
Envidraçados.

Contemplava o mundo
Minha passagem por lá
Naquele laboratório
Em que o farmacêutico
Preparava
Suas beberagens
Pós para curar feridas
Marcadas na alma
Das mulheres pecadoras
Que amavam outros homens
Que amavam outras mulheres
Que amavam a si próprias
Suas calças de marca
Seus penteados endurecidos
Por laquê.

Brinquedos atirados

Deixados ao relento
Os brinquedos não têm
Mais nenhum valor
Uma vez brincados com eles
São atirados ao relento
Até que a próxima criança
Chegue e brinque de novo
E quando a brincadeira perder a graça
De graça fica para quem encontrar
De novo
De novo começa a brincadeira...

Abandonos irracionais

Abandonado num dia de chuva
O cachorro não sente saudades
De seu antigo dono
Que agora sem dono
Tem toda a liberdade de viver
Na vadiagem das ruas sem lei
E morrer a cada momento
De um dia para o outro
E ninguém sentirá sua falta
Que um dia
Existiu um cachorro
Que tinha um dono.

Quem seria o cachorro?
Quem seria o dono?

Procura que não se cansa

Que palavra pode ser mais bela
Do que aquela que existe
Talvez seja aquela que precisa
Ser inventada
Na batida do coração
No sangue que circula
Percorrendo todas as artérias
Azuis e vermelhas
Oxigenadas
Carbonizadas
Nascidas
E morridas
No instante exato
Deste mesmo momento
Que não encontro
Palavra alguma
Senão o silêncio
Que contraria tudo
O que foi descrito
Num pergaminho
Perdido num mar
Que não existe mais.

domingo, 13 de novembro de 2011

Uma história não acontecida

Sem nada dizer foi-se
Numa ventania foi-se
Foi-se como isso tivesse importância
Como pudesse fugir
De um jogo de esconde-esconde
E assim refugiar-se num esconderijo
Bem longe
Como num dia apareceu
De surdina desapareceu
Apagando a cal impregnada
Numa lousa carregada de história.

Passagem da banda

Ainda em minha lembrança
De uniforme branco
Uma banda andava pelas ruas
E tocava uma melodia
Todos saíam para ver
A passagem da banda
A passagem da vida
E a vida passou...

Uma estátua de pedra

Naquela praça em que passava
Uma mulher nua de pedra
Sorria pela eternidade
Sem nunca mudar sua expressão
Lá estava
Ela
Nunca falava
Nunca reclamava
Mas continuava a sorrir
Um sorriso de pedra negra
Podia ser amada
Podia ser desprezada
Não mudava o sorriso lindo
No canto da boca
E assim permaneceu por anos
Do mesmo jeito
Enquanto a praça envelhecia
Veio um trator e tudo derrubou
Carregaram a mulher de pedra
Quebrou-se um dos braços
Esfolou uma perna
Enquanto sorria
Como nada tivesse acontecido

Em algum ponto da cidade

Os caminhos que cruzam
Minha cidade
Vão para todos os cantos
E para os cantos algum
Por mais que se caminhe
Não chegaremos jamais
A algum destino que seja
Pessoal
Por mais que tentemos
Tornar este caminhar
Um caminhar próprio
Será impróprio
Desejar um caminho que seja
Somente meu
Será teu também
Nenhum outro caminho existe
Além do próprio caminhar
Seja distante
Seja perto
Nunca sairemos do lugar
Em que sempre estaremos

sábado, 12 de novembro de 2011

Canto da terra condenada

As ondas que varreram Fukushima
Ainda continuam varrendo
As margens desoladas do Pacífico
E os arrozais contaminados
Por anos não mais produzirão
Enquanto as usinas radioativas
Continuarem vitimando
As mulheres que não se casarão
E as crianças sem nada saber
Numa praia qualquer
Continuarão a levantar
Castelos de areia
Ajudados por Jizo
Para serem destruídos depois

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Passarinhos

Passarinhos cantam invisíveis na árvore da praça
Só hoje parei para procurar
Mas só encontrei um passarinho
Que não sabe cantar

domingo, 6 de novembro de 2011

Pelas ruas de domingo

Sem se importar
Se hoje é domingo
Se isso realmente
Importasse
Dormia em seus trapos
O mendigo na rua
Abandonado por todos
Abandonado por mim
Que não pude nada fazer
Por isso fiz
Esta poesia
Para lembrar que havia
Um mendigo na rua
Um mendigo que dormia
Sem incomodar ninguém
Só eu me incomodava
Que havia
Um mendigo que dormia.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Batidas cardíacas

Nem sempre a esperança
É uma solução
Cuja espera pode estender-se
Pela eternidade.
O arroubo das paixões
Uma vez derramado
Escorre imediatamente
Para o ralo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma vida inútil

Que de bom fiz nesta vida
Senão errar pelas esquinas
Para ver sombrinhas azuis
Subindo ladeira acima
Em dias que não havia sol.

Um ato de esquecimento

Sei que vou esquecer
Das linhas bordadas
Por Ofélia
Só não posso esquecer
Daquilo que alimenta
Este constante viver
Com gosto de veneno
E cor maravilhosa.

De onde sopra o vento

Nenhum motivo para desespero
Quando uma apática indiferença
Possa causar danos incontroláveis
Mesmo assim o moinho de vento
Roda num leve soprar
Ao sabor salgado que sopra do mar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Silêncio cai devagar

Calar-se por momentos
É mais comprometedor
Do que todas as palavras ditas
Pois no não dito
Esconde-se aquilo que nenhuma
Palavra pode dizer.

Cidade passageira

Chovia naquela tarde
Incessantemente chovia
Pelas ruas desta cidade
Enquanto a vida passava
Passava urgente a mulher
Que perdia o trem
Era o trem que passava
Era também
Um tiro que passava
Um raio também
Veio a morte
Mas nada detinha
Daquilo que arrastava
E passava
Passageiro de passagem
Sem nunca se deter
Um instante sequer.

domingo, 30 de outubro de 2011

Via expressa

Adiante estava anunciando
Pare!
Alguns passaram
Sem respeitar a placa
Pare!
Por um momento
A vida parou
Para uns
Para mim a vida
Continuou
Indiferente o que dizia
Aquela placa
Pare!
Continuei parado
Por algum tempo
Sem que o mundo
Deixasse de girar
Um segundo sequer.

Viagem sem destino

Não renego
Jamais
Uma vontade insana
De partir
Sem destino certo
Destino algum
Pode ser Kanchaka
Pode ser a Conchinchina
Que deixou de existir
Quero partir para lugar algum
Acima do Equador
Abaixo do Equador
Onde as mulheres não envelhecem
Mais
E oferecem seus colos
Para que os pássaros façam ninhos
E uma cachoeira caia
Para que os homens afoguem
Suas mágoas
Para continuarem a viver.

Sem rastros sem saudades

Que pode ser mais ilusório
Do que o tempo passado
Como nada tivesse realmente
Acontecido
Como tudo tivesse realmente
Acontecido
E assim desaparecido
Como uma nuvem branca
Que neste momento havia
E se desfez
Como nunca tivesse realmente
Havido.

Que me importa
As evidências de uma suposta
Existência
Se não existe mais
Nem mesmo a lembrança
Que a cada momento
Mais opaca fica
E um dia chega
Em total amnésia
Do que foi um dia.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Em causa perdida

Era uma casa de secos e molhados
Era a casa de minha mãe
Em que me perdia nas prateleiras
Das garrafas de groselha
Perdia-me com tamanha vontade
Que nunca mais voltei
E perdido continuo
Misturando as letras
Dos rótulos
E enganando o tempo
De avançar.

Noites de sonolência

Em minhas noites
Ainda me assombra
O homem preto
Carregando um saco enorme
Cheio de biscoitos.
Sua voz é rouca
E anuncia roucamente
Biscoito
Biscoito
Biscoito
Nunca comprei
Biscoitos dele
Nem sei se realmente gosto
De biscoitos
Mas ele insiste...

Nada mais acontecia

Todos os dias
Naquela mesma hora
Duas velhas caminhavam
Em direção à igreja.

Todos os dias
Naquela mesma hora
Dois soldados montavam
Guarda na porta do quartel.

Sempre era a mesma coisa
Nada mudava
E por anos continuou assim
Por detrás daquela janela
Os olhos que espiavam
A rotina de sempre.

Um dia
Uma das velhas não passou
E criou-se um alvoroço
O que teria acontecido?
Os soldados levantaram armas
E apontaram
Até que a velha apareceu
E assim
Duas velhas passavam
Em direção à igreja.

Nada mudou na vida
Daquela cidade
Que nada acontecia
Senão a passagem
De duas velhas
Em direção à igreja.
Como sempre foi
E qualquer mudança
Não era bem vinda.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

As meninas das brincadeiras

Aquelas meninas com quem brinquei
Um dia
Onde andarão?
Terão crescido?
Não seria justo
Não seriam mais meninas
E que não brincam mais
E que esqueceram também
Que um dia
Brincaram também.

Em algum lugar neste mundo
Pode ser
Pode ser debaixo de uma folha
Oculto numa nuvem
Numa estrela
Em algum lugar neste mundo
Continuam brincando
E continuo brincando com elas
Que nunca cresceram.

Somente cresceu
Minha falta de inocência
Somente cresceu
Minha total intolerância.

domingo, 16 de outubro de 2011

As crianças levadas pelas ondas

Aquelas bonecas de madeira
Branca
Aquelas bonecas japonesas
Sem braços
Sem pernas
Que segredos esconderão?

Kokeshi ningyo
Assim se chamavam
Kokeshi ningyo
Foi assim que as conheci
Que serviam para enfeitar.

Bonecas de madeira
Bonecas de Miyagi
Que as altas ondas destruíram
Carregando casas
Carregando crianças
Carregando bonecas
Carregando kokeshi ningyo
De Miyagi.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Felicidade cruza a rua

Prestes a atravessar
A rua
Chega alguém
Que nunca vi
Que nunca mais verei
Em questão de instantes
Lança-me uma pergunta:
- Você é feliz?
Que direito ele tinha
De perguntar
Pergunta tão pessoal
Que resposta alguma
Foi devolvida
Só queria saber
Se alguém que cruzasse
Na rua
Era feliz
Apenas isso
Mas nada foi dito
E cada um foi para
Um lado
Como nada daquilo
Tivesse acontecido
Algum dia
Que importância tinha
Afinal
Se alguém era feliz

E Nagasaki ficou

Tenho na sola dos pés
O solado que ficou
Das ruas de Nagasaki
Por onde andei e saudade
Ficou
Em Nagasaki ficou
Um pouco de mim
Das águas daquela cidade
Em que me banhei
Curei um pouco
De uma doença imaginária
Que de pouco a pouco
Novamente
Toma conta de mim
Mas quando me lembro
De Nagasaki
Durante a primavera
Chega-me um consolo
Soprado por um vento
Que venta de lá
Que venta em mim

Nas águas plásticos do kingio

Numa esquina que
Jamais esqueci
Jamais voltei
Ainda existe
O vendedor de kingios.

Era naquela esquina
Num saco plástico
Quase a sufocar
Naquelas águas
Kingios nadavam.

Naquelas águas
Ainda
Os kingios continuam
A nadar
Como que o tempo
Não mais existisse.
Kingios coloridos
Dois kingios
Um casal de kingios.

Cheguei a pensar
Que o kingio era eu
Mas um dia
O kingio morreu
Cheguei a pensar
Que o kingio era eu.
Meu egoísmo foi tamanho
Que recusei-me a morrer.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um bolo na cara!

Nem sei que razão há
Irracional seria se houvesse
Alguma razão
Para se comemorar
Aniversários.

Após cinco décadas de vida
Metade de uma vida
Ainda se para
Para comemorar
Aniversários.

Ser lembrado causa
Constrangimento
Por estar mais enrugado
Menos sonhador
Mais próximo da própria morte.

Se for assim
Comemorar talvez seja
Comemorar o ano que foi
Sobrevivente das tempestades
Amorosas e reumáticas
Febres sem motivos
Físicos e espirituais.

Comemorar é ironia
Que não combina
Fora de tom
Que não tem rima.

O Poder da palavra mítica

Da mesma forma que, no ato de Criação, a palavra divina do Ser Supremo veio animar as forças cósmicas que se acham estáticas, em repouso, a palavra humana anima, põe em movimento e desperta as forças que se encontram estáticas nas coisas.
À imagem da palavra do Ser Supremo, da qual é eco, a palavra humana põe em movimento forças latentes, que despertam e acionam algo, como ocorre quando um homem se ergue ou se volta ao ouvir chamar seu nome.
A palavra humana é como fogo: pode criar a paz, assim como pode destruí-la. Uma só palavra inoportuna pode fazer estourar uma guerra, assim como uma simples fagulha pode provocar um incêndio.

LOPES.Nei, Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos, Rio de Janeiro, Senac rio, 2005, p.31

Sabedoria popular será

Num muro
Da Praça Roosevelt
Numa pichação
Estava posto
“Viver é esquecer
Lembrar é sofrer”.

Mas pode se diferente
Poeta ausente
“Amar é perder
Viver é fingir”
Poeta fingidor.

Um ipê amarelo mirrado

Acreditem
Como no ano passado
Como no ano retrasado
Como nos anos que passaram
Uma década se passou
E todo ano
Passado o ano
Novamente floresceu
No mesmo jardim
O pequeno ipê
Mirrado ipê
Sem presença
Quase oculto
Sem que ninguém notasse
Até que notei mais uma vez
O mesmo ipê
Com galhos delgados
Soltando na brisa
Uma flor hoje
Outra amanhã
Sem inundar nunca o jardim
De maneira discreta
Sem que ninguém percebesse
Que continua florindo
Ipês amarelos
De beleza imensa
Mais bela ainda
Do que todos os outros
Ipês amarelos floridos
Desta cidade.

As paredes brancas de cal

Ainda que as paredes sejam surdas
Elas ouvem
Ainda que as paredes sejam mudas
Elas falam
Mas basta uma camada de cal
Para calá-las
Se enxergavam
Não enxergam mais
As paredes testemunham
A vida acontecendo
E vivem juntos
E juntos também morrem.

O rosto de um outro

Nunca olhei para espelhos
que refletissem o meu rosto
que desgosto era me ver
e sem saber de quem era
aquele rosto.

Um rosto refletido
de alguém
não sei
de quem é o rosto.

De alguém com quem
nunca vou me encontrar
com quem nunca vou falar
nem tomar café no bar.
Ainda que seja assim
anda ao meu lado
aquele rosto
não muito familiar
um pouco antipático
como dissimulasse
um sorriso forçado
que nunca quis dar.

Um rosto que existe
para todo mundo
só não existe para mim
que carrego
como fosse alguém
totalmente estranho
sem nenhum caráter
sem coragem
sem dinheiro no bolso.

Não procuro por ele
não procuro por mim
que sem rosto
somente o espelho reflete
o que os outros vêem
sem saber
de quem é aquele rosto.
Talvez seja o rosto de todos eles
menos de mim
que não tenho nenhum
que possa ser visto por mim.

Um tufão por aqui se foi

Como um tufão passou o tempo
E não deu tempo para salvar
O que estava na sala
Cujas paredes testemunhavam
Uma história
Que merecia ficar
Não ficou sequer
Uma pedra sequer
No mesmo lugar.

Quem ficou para contar
Não contará
Assim nada aconteceu
Continua acontecendo ainda
Em algum lugar
No fundo do mar
É a sereia que sabe
É o lobo marinho.

Naquelas águas visitarei
Naquelas águas visitará
Quando o tempo chegar
Com barbas brancas
E histórias para contar.

sábado, 8 de outubro de 2011

A movimento do universo inteiro

A escolha é um relâmpago ⎯ eis o trovão
a chuva e

o estio


Do sol azul
também não quero nada

nada


Poesia é assim ⎯ qual o meu nome?

Palavras são vivas como o braço de uma cadeira e o que é vivo é não conhecer descanso

Nem prisão

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Assim Cláudia caminhava

Cláudia claudicante
claudicava constantemente
e perdia a postura
toda a descompostura
até se levantar novamente
e novamente
continuar em frente
indiferente a tudo
que pudesse
por uma pedra
em sua andadura.

Por onde andava
deixava atrás de si
os homens enlouquecidos
de amor
que enlouquecidos
ficaram por ali
errando na vida
vivendo a vida
de todos os devaneios.

Com Cláudia aprendi
que claudicar
também é viver
sem padecer
um instante sequer
e rir
e chorar
e morrer a cada momento.

Se procurarem por ela
não acharão
em nenhuma estrada
perdida neste mundo
afinal ela sempre anda
na contramão.

Solitária em suas andanças
nenhuma companhia é melhor
do que a sombra companheira
que aprecia poesia
uma dose de cachaça fria
para espantar o tédio.
Claudicante caminha
sem retroceder
caminha
sem direção
caminha
onde o caminho leva.

Primavera insana

Em tempos de primavera
o que comemorar?
Se a lagartixa de sempre
continua a defecar
no mesmo local
animal hibernal
que nada mais faz
do que viver no teto
nas trincheiras de madeira
uma vida guerrilheira
de uma causa perdida
pois nenhum sonho mais há.

Ninguém mais assobia
uma triste melodia
só para irritar
os bens de vida.

Ninguém mais dança
um bolero de Ravel
daquela cigana
que tinha o mundo.

Em tempos de primavera
o que comemorar?
- Um aniversário que ficou velho
que cansado preferiu parar.
Pelo menos estamos vivos
com dores por todo corpo
sobreviventes de uma acidente
nuclear.

Em tempos de esquecimento

Quem era você
não me importa mais
se o tempo passou
passou também a vassoura
pelos jardins da memória
não deixando sequer
uma folha atirada
ao relento.

Sempre te conheci
nunca te conheci realmente
nem sei mais seu nome
que também mudou.
Seu rosto mudou
em instantes
e nada mais
me parece familiar.

Fico-me a perguntar
em que momento parei
de sonhar
e todo o sorriso que havia
se desfez
como castelos de areia
levados pela água
salgada do mar.

Peregrino sem causa

Em cada esquina de minha vida
um pouco que seja
esqueci-me de quem era
e deixei amores
e deixei livros
que em minhas costas pesavam
mesmo assim eram minhas
as pernas
que doiam e caminhavam
por onde o caminho levava
e venci encruzilhadas
e perdi batalhas
e cada batalha perdida
nem sabia mais o que
realmente perdia.

Não era o que importava
se importava alguma coisa
além do que caminhar.

Não era a minha vida
perdida em andanças
cidade adentro
cidade afora
em vilas da periferia.
Era a vida daqueles
que não mais caminhavam
por cansaço talvez
por indigestão talvez
por desistência quem sabe.

Daqueles que caminham
estes ainda conseguiam ver adiante
o mundo desmoronando
sem que nada pudesse fazer
senão contemplar
o vento varrer o horizonte
de maneira lenta
acariciando a pele molhada
pela chuva de primavera
perfumada e doce.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A tristeza de viver

Num muro pichado
Um dragão pichado
Com garras de leão
Ganhava vida
E revirava os olhos
E saia à procura
De um herói
Que pudesse matá-lo.

Assim fez
Uma vez
Duas vezes
Outras vezes
Sem que encontrasse
Uma lança resistente
Uma espada cortante
Que pudesse matá-lo.

Não havia heróis
Nem anti-heróis
Que pudesse contar
Uma história simples
Com final feliz.
Um dragão havia
Numa velha pichação
Que envelhecia
Enegrecida pelo tempo
A graxa escura do tempo
Que também deixou
De existir.

E não havia
Quem pudesse matar
O dragão da pichação
Que desiludido
Continuou vivendo
Naquela parede
Sem chamar a atenção
Sem a chama da paixão
Indiferente a tudo.

Marcando para sempre

Escrevestes teu nome
Em tua pele
Escrevi meu nome
Em teu coração
Em tatuagem.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A vida engraxando

Os meninos engraxates
Disputam sapatos
Para polir
Os meninos engraxates
Havia aos montes
Naquela praça
Brincavam de polir
Repicando na caixa
Na lata de graxa.

Quando cresceram
Os sapatos desapareceram
E os meninos engraxates
Tornaram-se parte apenas
De minha memória.

Praça da Liberdade

Numa mesa de bar
Havia
Na Praça da Liberdade
Havia
Mulheres sexagenárias
Usando chapéu
Luvas longas nos braços pálidos
Misturando suas tristezas
Nos goles fartos
De uma cerveja doce.

Quem eram aquelas mulheres
Livres
Livres demais
Com semblantes orientais
Saídos de um filme
Surrealista
Demais.

Quando todos trabalhavam
Elas viviam intensamente
Numa mesa de bar.

A folha cai

Sem nada esconder
A folha que despenca
Ao final do inverno
Revela
A frente e o verso
O verso e a frente.

Que lado realmente
Revelamos?
Se fingimento fosse solução
Toda mentira seria sustentável
Suave é a mentira que agrada
Os bem educados!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Amigo de verdade

Era na praça da matriz
em que descobri meu primeiro
animal.
Era de estimação.
Era um sapo de cimento que
esguichava água pela boca.
Nunca me esqueci dele
meu primeiro amigo
que jamais me abandonou.

Que se deu com Graziela

Havia na terra em que nasci
Graziela
nem bonita era ela
nada tinha de interessante
senão o nome
Graziela.
O que teria acontecido com ela
nem sei por quê falar dela
mas ficou apenas a lembrança
de seu nome
Graziela.
Mas quando penso em
Graziela
retorna-me em instantes
um rosto comum
sem importância alguma
em sua vida sem importância
mas agrada-me simplesmente
dizer
Graziela.
Se Graziela não existisse
pelo menos ficaria o nome
que poderia ser de qualquer uma.
Prefiro que não seja de nenhuma
pois nenhuma pode se chamar
Graziela.

Último clarão na Paulicéia

Quando a tarde chega devagar
por entre as alamedas
uma sombra do passado
também descansa por entre
bancos de metal que o tempo
deixou de devorar.

Mesmo que nenhuma presença
seja sentida
toda presença se faz necessária
para que a vida continue a vicejar
e nunca a alegria desapareça
daquele rosto comum
perdido na multidão.

Por onde quer que se vá
errando pelos meandros
das esquinas sujas
disputadas pelas prostitutas
e bêbados vagabundos
uma solidão estampada
nos gestos lânguidos
pelos desiludidos da vida.

Nenhuma esperança existe
suave esperança
dos que esperam
ajuda divina.
Se divino fosse seria
humanamente imperfeito
e São Paulo seria
a terra em que sempre vivi.

Ainda que desconheça as faces
que encontro pelas ruas
sempre as conheci
cumprimentei às vezes
não reconheci às vezes
em insípido desprezo.

Antes que a noite venha de vez
e a lua venha dançar uma valsa
que as casas de baile deixaram de ter
o que restou do amor
senão o testemunho dos muros
que se calaram para sempre.
Em nenhum outro lugar
sinto-me como aqui
Nunca saí daqui
em que plantei sonhos
que pensei serem realidades
foram com o vento passageiro
e também o tempo se foi
passageiro também
foram-se alguns amigos
que juntos sonhamos.
Desistiram da vida
e pararam de sonhar.
Por teimosia insana continuo
a sonhar com os amigos
que restaram
outros amigos que somaram
aos mesmos sonhos
sonhados por mim.
Esta cidade cabe dentro
de um mesmo sonho
que outros também sonham.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A falta de importância

Quando nada mais há
para se fazer
nada se faz senão
contemplar a vida continuar
sem se deter
um instante sequer
indiferente a tudo
que possa acontecer.

Eu posso gritar
posso também criticar
inclusive deixar de respirar
mesmo assim
indiferente a mim
aquilo que penso
nada disso parece
importar.

Mas o que importa?
se algo realmente importa
que de importante se faz
a custa do vento que traz
uma força que roda
com força
o roda-moinho
de uma página virada
do Don Quixote.

Quando nada mais há
para se fazer
pelo menos continuamos
a viver.
Viver apenas num sonho
sem se importar se existe
algo que seja importante.
Importante é deixar de lado
toda a importância
e com toda a falta de importância
possamos caminhar pelas trilhas
inventadas pelas nossas pernas.

Se foi com a florada do ipê

Era primavera quando ela se foi
foi junto com a florada do ipê
imenso ipê amarelo.

Depois o ipê emudeceu
perdeu todas as folhas
ficou sem as flores
sem nada ficou.
Assim se foi...

Mas toda vez que chega
a primavera
de novo o ipê amarelo
amarela de novo
e amarelo fica
toda a rua amarelada
imenso tapete amarelo.
E aquela que se foi
não volta mais...
(amarelou)
Que me importa isso
se o importante é o ipê florescer.

Se ela não aparecer
fica a esperança
suave e ingênua esperança
que retorna toda vez
que o ipê florescer.

A lembrança que fica

Nas águas correntes banhei-me um dia
nas mesmas águas correntes banhastes um dia
não consegui um momento sequer
deter daquelas águas
que agora correm somente
nas correntezas de minha mente.

Nem por isso a tristeza me aflige
se não posso mais
usar daquela água
que se foi para sempre
desembocar no mar
e se tornar um imenso mar
com todas as águas derramadas
das lágrimas e lamentações
da lembrança que fica
adormecida fica
no fundo
no mais profundo
redemoinho
perdendo-se
enfim
num montículo de areia
que se forma
que logo se transforma
naquilo que sempre foi.

domingo, 11 de setembro de 2011

Perdidos apenas

Amigos de anteontem
Onde andarão?
Por um momento foram
Mesmos os caminhos tomados
Quem sabe os caminhos cruzaram
Depois descruzaram
Para não se cruzarem mais.

Amigos de anteontem
Onde andarão?
Quem sabe morreram
Quem sabe viveram por outras causas
Em terras distantes
Do outro lado do bairro
Desta mesma cidade que habito
Paulicéia enlouquecida
Pelos destinos mal traçados
Das amizades feitas
Depois desfeitas
Por não se interessarem mais
Pelas brincadeiras de antes.

Amigos de anteontem
Onde andarão?
Quem sabe:
Apenas em minha memória
Na memória dos outros
Esquecidos.

sábado, 3 de setembro de 2011

Espelho de pedra

Não quero ser monge
monge com estilo
monge deste ou daquele tipo
Sou assim, assim sem princípios
que ao pegarem meus pés
agarrem os cabelos

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A boneca sem braços

Deram-me de presente
envolta em papel celofane
uma boneca japonesa.
De madeira era ela.
Sem braços era ela.
Sem pernas era ela.
Chamava-se
Kokeshi ningyo.

Ela era dura
não servia para brincar
com as meninas.
Ela era sem braços
não servia para abraçar.
Sem pernas
não andava
mas estava sempre em pé.
Ereta ela ficava
sorrindo para todos
sobre um armário carcomido
pelo cupim.

Durante o tempo que ficou
no mesmo lugar
e o tempo passou
passou em revoada
as andorinhas de verão
e branca ficou a barba.
Mas aquela boneca
nunca perdeu a pose
nunca realmente envelheceu.

- Que raiva sinto disso!


Ao cavoucar fundo

Alguém em algum lugar
que ouço com vagar
o som de um instrumento
a perfurar a terra.
Quanto mais fundo fica
uma noite profunda fica
e quem me visita
são os cavalinhos do passado
montados pelos amigos
que se foram um dia.

Se foram e me deixaram só
com seus castelos de areia
a se desfazerem ao menor movimento
de uma onda rasteira.
Depois que a onda se foi
nenhum sinal apareceu
nem restaram as ruínas da destruição
como nada tivesse um dia
realmente existido.

Sem olhar para trás
cujos passos apagados
não retornam mais
o horizonte adiante
é largo demais
para uma existência rala
sem consistência
senão apenas
pelo aroma da primavera
que novamente encanta
os pés que se arrastam
errantes
em direção qualquer.

Tempos de friagem

Ao som que de fora invade a sala
a umidade visita-me desoladamente
enquanto as veias verdes das pernas
ressentem-se.

Por um momento em minhas orelhas
toda a água escorre em cachoeira
trazendo um frescor
em gotículas glaciais.

E assim nesta espera constante
o mundo para por instantes
e demorado se torna os movimentos
desta mão que se solta e levanta
e acalenta uma sombra que se desfaz.

Pelas frestas da janela uma luz opaca
mal clareia o canto em que nasço e morro
a cada instante
e cada vez mais
mais distante fico daquilo que pensei
saber um dia.

Nem mais reconheço mais a face
estranha que num espelho envelhecido
perdeu todo o encanto.
Desencantado procuro pela casa
um sinal que seja suficientemente claro
para que eu seja
mas acabo desenganado
pois nada existe senão
uma camada de poeira
largada acima da cama fria.


domingo, 28 de agosto de 2011

Levado pelo vento errante

Ainda que procuremos fugir
Não fugimos das encruzilhadas
De nossas vidas
Que inevitavelmente
Há de acontecer
Sem nenhum desejo
Que assim pudesse ser
Como que a vida pudesse
Ser planejada?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Para deixar lembranças

Foi numa velha árvore
Que escreveu o seu nome
A árvore cresceu
E o tempo passou
E tudo foi esquecido

Foi numa velha árvore
Que escreveu seu nome
Veio uma tempestade
E derrubou
E arrancou as raízes

Foi numa velha árvore
Que escreveu seu nome
Naquele momento
Era o melhor nome
Que ainda causa
Arrebatamento

Foi numa velha árvore
Que escreveu seu nome
Só pela emoção
De gravar na madeira verde
A ponta de um canivete
Como uma tatuagem

Foi numa velha árvore...

Viver para esquecer

Em vão procurei por um amor
Não sabia contudo
Quanto mais procurava
Mais distante ficava
Assim parei de procurar
Esqueci-me do que procurava
E a procura esqueceu-se de mim
Até de mim esqueci
Enfim esqueci do próprio esquecimento
Nem ao menos soube-se depois
Quem procurava quem
Quem esquecia de quem
Nada havia
Nem lembranças
Nem esquecimento
Nem tristezas
Nem alegria
Apenas havia
Um grande silêncio
Que também foi
Esquecido

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

As lágrimas derramadas

Que valem as lágrimas
Se apenas valem
Um pouco
De potássio
Rejeitado pelos olhos?

Foi assim que ouvi

Alguém assim disse
Numa canção antiga
Que a felicidade só existe
Bem acima
Acima das nuvens.

Alguém assim disse
Numa canção antiga
Que o amor só existe
Bem abaixo
Abaixo das nuvens.

Não se pode ter
As duas coisas...
Alguém assim disse.

Alguém seguia um cego

Era um cego que seguia
Uma bengala
Arrastada ela seguia
Um cego
Que desconhecia
Onde ia
Se ia para algum lugar
Não se sabia.
Apenas seguia
Uma bengala
Era um cego que seguia.

Pouso Frio

noite profunda em Pouso Frio
enquanto a iluminação não vem
uma vela acesa para Deus,
outra para o diabo

***

meio-dia
a total ausência de pássaros
proclama o dharma


***

meia noite
o rugido da água
o riacho enxerga no escuro

***

em meio ao chiado do rádio
tudo parado nas marginais
as montanhas não param

***

toda madrugada
hora e meia de vigília
algazarra dos morcegos

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Negra estátua


Aquela imagem enegrecida do tempo
Exposta aos escapes automotivos
De pé na praça, pela eternidade
Olhando o mesmo banco por meia década
Deixa as pessoas irem e virem
Ao sabor do vento
Sem pará-las, questioná-las ou chama-las
Numa retidão sem igual
Sob um ninho em sua cabeça
Que comporta a mente mais serena que já vi

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Entre Sol e sombra


Caminho pela calçada
E torço para que haja mais lugares de Sol
Do que lugares de sombra
Assim posso esquentar meu sangue
Durante as passadas
Largas, imprecisas e cambaleantes
Antes de entrar para o ar condicionado
Que seca meus olhos

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Mendigo e a Virgem Maria

Ali estava
Prostrado diante da santa imagem da Virgem Maria
Amarrado aos trapos
Pés descalços e sujos
Conversava apoiado naquela carroça
Com um monte de papelão
Que pegou não sei de onde
Conversava com a estátua
Numa ou noutra realidade
não sabia qual
Que de certo não a mesma que a minha
Declamando poesias e amores hereges
Esperando uma resposta
Que veio somente como um eterno sorriso

domingo, 31 de julho de 2011

Um amor efêmero

Muito breve foi a florada
Que animou minha vista
Por alguns dias
Que tingiu minha vista
De intenso rosa
E ficou cor de rosa
Minha vida.

Depois o que restou
Foi somente
Foi um rosa
Que não me sai
Diante da vista
Que continuou
Florescendo
Sem se importar mais
Do velho pé de ipê
Que foi esquecido
Numa bifurcação da esquina.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Inventando a vida

Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como ocorria na adolescência, que me preservasse das feridas que eu poderia sofrer nos encontros com pessoas reais; em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo.

TODOROV.Tzvetan, A literatura em perigo, Rio de Janeiro: Difel, 2010, p.23

Dança em roda

Dançando uma roda aqui
Ao terminar a dança
Uma outra dança
Se dança alí
Em roda sempre
Em volta do umbigo
Em volta de um lago
Sem se cansar nunca
Ainda que a idade venha
Ainda que o sonho acabe
Ainda que as dores lombares
Venham
Continua-se dançando
Sem ver outra coisa
Repetindo mesmos passos
Na mesma cadência
Monótona cadência
Como nada mais tivesse importância
Senão o de continuar dançando
Ao som da ilusão
De que se um dia parar
As pernas parem de andar
E toda dança não passará
De um movimento
Sem nenhuma razão.

Praça da matriz

Naquela praça de minha memória
Havia uma fonte com quatro sapos
De pedra
De suas bocas jorravam
Toda água benta
Da Igreja matriz
Em que banhei a minha alma
Mas descobri
Que alma não havia
Mas mesmo assim
Lavei naquele instante
As impurezas do mundo
Impregnadas então
Nas roupas negras
Das velhas em ladainha
Monótonas
Nas tardes de verão.

Na contramão do movimento

Quando todos trabalhavam
Os carros cruzavam as ruas
E a viatura fazia a ronda
O sinal vermelho anunciou
Parar!
Todos pararam
E o mendigo de sempre
No viaduto de sempre
Continuou dormindo
Ao lado da mulher
Ao lado do cachorro
Sem se incomodar
Que o mundo parara
Naquele instante.

De outros tempos

Em algum canto deste mundo
Ainda vive um menino
Numa sala de aula havia
Dois
Diferentes
Tão diferentes
E tão iguais
Suficientemente diferentes
Um era negro
Outro era eu
O negro chamavam Pelé
O outro chamavam japonês
Ainda que quisesse ser igual
Aos outros
Que comiam macarronada
Aos sábados
Nunca fui igual
Nem queria ser igual
Pois sabia usar hashi
Comer sushi
E não repartir com ninguém.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Catador de papelão

Empurrando carroça acima
Não desanima jamais
Carroceiro desta vida
Levando papel papelão
Carrega o mundo todo
Todos os pensamentos
Bandidos e mocinhos
Dançarinas de cabaré
Mulheres negras da igreja

Só não carrega mais
O sonho que se esvaiu
E caiu num ralo
E se foi
Em redemoinho...

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Redemoinho de sal

Que restaram dos campos de arroz
Quando as águas de sal
De um mar revolto pelas terras
Entraram
Levaram enfim uma multidão
De sonhos plantados
Das curvas das costas
Das mulheres que cantavam
Sucesso de uma colheita farta.

Veio a destruição
Em ondas gigantes
E a dor foi imensa
Que ainda pode ser ouvida
No silêncio das noites altas
Em que as crianças choram
Os adultos também
Também os cachorros e os gatos.

Prostrada Fukushima
Espera o sol esquentar
Alisando a pele das meninas
Para que esqueçam logo
Da água salgada
Que salgou toda a terra
Sem que um verme sequer
Fosse salvo.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Ao cair da tarde

O chá um tanto morno
Não espanta o frio que percorre
As artérias das pernas
Que cruzadas
Descansam sobre a almofada.

Assim fazendo
Milhares de anos se passaram
E milhares de livros lidos
Sem que nenhum conhecimento
Fosse realmente adquirido
E assim sinto-me
Como o mais inútil
Dos mendigos
Que pelo menos
Não se envolveram
Com o sonho sinistro
Das ruas e casas de janelas fechadas.

Alguma palavra que escrevesse
Nenhuma certeza havia
Senão a de nada dizer
Do que uma palavra esquecida.
Ainda assim
Sem a esperança de dizer
Continuei escrevendo
Nas paredes descascadas
De uma casa abandonada
Quem sabe
Alguém pudesse passar por ali
E curiosamente
Ler e sorrir
De felicidade suponho
De ironia de minha angústia
Suponho.

domingo, 17 de julho de 2011

Uma vida errada

Pelas ruas de minha vida
Perdi uma vida inteira
Por não juntar figurinhas
Como fazia minha vizinha.
Ao invés
Preferi caçar passarinhos
Perdi a vida inteira
Fazendo isso
Fazendo aquilo
Que não me convinha
Aquilo que convinha às convenções
Aquilo que dava taquicardia
E passei a sofrer
De rinite aguda
Que nos dias de inverno
Incomoda a alma inteira.

Conheci Rita
Que me colocou no mal caminho
Que se foi sem dizer adeus
E nunca mais escreveu
Mas ainda assim
Nunca mais saiu de minha vida.

Que seria de mim
Se não tivesse me perdido
Nesta vida!

No lodo da civilização

Há muito me perturba
O homem de lodo anoitecendo
Nas beiradas do rio Amazonas
Como surgindo de um pântano
com seus olhos sem expressão
com seus braços de borracha
negros como a fuligem dos pneus
sem nada falar
falava em sua mudez
a falta de humanidade
dos homens da grande cidade
que não se importam
da boa amizade
dos velhos amigos
que envelhecidos
nada mais fazem
do que matar a saudade
de uma memória fugidia
que ainda resta na réstia
de uma vida
que valha a pena
Ser vivida.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cidade de Escher

A cidade se constrói
Na nossa frente
Como nas obras de Escher
Onde o chão é o teto
E o teto é as paredes
Altas e maciças de concreto armado
Que armam o cenário
No palco do dia-a-dia
Construindo e desconstruindo nossa visão
Do nosso próprio ambiente
Com suas possibilidades e limitações
Lógicas e paradoxais
Que encontramos na Avenida Paulista

17h43

17h43
Banha de ouro
Todos que se colocam sobre o solo
Na cidade do Eldorado

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Estrangeiros da praça

Ao se passar por lá
Não passe jamais
No chão ainda manchado
Por um karma passado
Da esperança que se foi
Foi-se o sonho da esperança
Mas por aqui ficou
E criou raízes
Na Praça da República
Velho centro metropolitano
Cigano e baiano
Que pulsa num coração
Estrangeiro
Que daqui não mais sai
E ficou
Com todas as alegrias
Tristezas também
Assim sentiu-se um pouco mais
Parte desta terra
Que sopra ao entardecer
Suave brisa que esfria
A mente pesada.

Sono dos inocentes

Quando a cidade amanhece
Pela São João não amanhecem
Olhos que se recusam a ver
Ainda mergulhados num mundo
Mais claro do que a claridade
Do sol que ama invadir toda
A privacidade.

domingo, 19 de junho de 2011

Os olhos que procuravam

De uma janela espiava o mundo
Esperando que um dia
Viesse alguém bem afeiçoado
Que pudesse levá-la dali.
E assim esperou
Até que as rugas surgiram
Nem era tão bonita assim
E por fim apareceu
Alguém não tão afeiçoado assim
Mas era o que apareceu
Não a levou dali
E se instalou naquele lugar
E foi se ajeitando
E foi ficando.

De uma janela continuou
Espiando o mundo
Sem esperar que a felicidade
Pudesse entrar
Pela porta da frente.

Somente espiava
Para não perder o jeito.

Errando nas águas de seus olhos

Naqueles olhos fundos
Naveguei
Sem saber nadar
Me afoguei
Para nunca mais sair
Daquelas águas revoltas.

Ainda continuo
Em redemoinho
Cada vez mais fundo
Resistindo às vezes
Deixando-me levar às vezes.

E assim vou vivendo
Como um marinheiro sem vela
Errando pelos mares
Sem nunca encontrar
Porto seguro.

O Mendigo e a rosa

Naquele dia uma rosa vermelha
Era o que tinha o mendigo
Numa das mãos.
Para quê serve uma rosa vermelha
Para o mendigo
Que levava consigo
Numa das mãos?
Por que levava ele
Numa das mãos
Uma rosa vermelha?
Era apenas uma rosa vermelha
Sem nenhum outro significado
Senão a de ser
Apenas uma rosa vermelha.
Se fosse João
Seria diferente
Se fosse Carlão
Seria diferente
Mas era um mendigo
Aquele mesmo que mora
Num ponto da esquina
Fazendo as mesmas coisas
De sempre
Não fazendo nada
Senão sentado ao lado
Do mesmo cão
Na mesma cama suja
Feita de papelão.
O que incomodava
Era ver o mendigo
Carregando na mão
Uma rosa vermelha.
Justamente ele
Que não era
Era um mendigo apenas
Sem nome
Sem identidade
Nem era bom
Nem mal
Nem incomodava
Nem chamava
Atenção
Mas agora em todo mundo
Somente existia ele
O mendigo que levava
Uma rosa vermelha na mão.

Quando calar é necessário

Nada mais para falar
Nenhuma palavra a mais
Mas o sorriso continua
Brilhando num dente branco
Sem culpa alguma.

Há um momento em que as palavras
Não dizem mais
Portanto nada melhor
Do que se calar
Sem culpa alguma.

E neste silêncio
Nesta ausência total
De qualquer ruído
Todo sentido é possível
Sem culpa alguma.

E somente distante
Ficamos mais próximos
E somente calados
Ficamos mais falantes
E pela eternidade
Possamos viver
O momento que já se foi.

domingo, 12 de junho de 2011

Olhos que enxergam

Somente quando fecho os olhos
Fecho também todos os poros
Das impurezas radioativas
Que causam anemia profunda
Uma fraqueza que inunda
As artérias estreitas
Que em minha carne perfura
Como lanças.
Fecho os olhos para enxergar
Numa escuridão cada vez mais clara
Que mais revela do que oculta.

Nada mais além

Não podemos negar
Um sofrimento que há
Em cada coração perdido
Em cada rua desta cidade
Que não cansa de pulsar.

Não podemos negar
Um desencantamento
De um mundo cada vez mais
Petrificado no cimento armado
Dos punhos armados
E corações duros
De vidro e ferro.

Não podemos negar
Os desencontros amorosos
Que somente se realizam
No abismo mais escuro
Dos sonhos profundos.

Não podemos negar
A vontade da contravenção
Inibida e desprezada
Pela ordem vigente e prezada
Dos bons costumes.

Não podemos negar
A negação da liberdade
De expressão
Daquele verbo primitivo
Nascido dos instintos
Longitudinal dos intestinos.

Simplesmente
Não podemos negar.

Sem lugar à mesa

Não é o frio que me espanta
Nem é mesmo a noite vazia
Que desce com todo o seu peso
Em minha cabeça.

O que me espanta
É a total indiferença
Do amigo que falta à mesa.
E nos conformamos com a falta que faz
Da companhia que sempre repartia
Suas velhas memórias
Desencontros de uma vida
Que se realizou.

Memórias são também minhas
Que não morrerão tão cedo
Enquanto amigos reunirem-se
Numa esquina qualquer
Em volta de uma mesa
Só para compor
Poesia.
A vida é poesia
Que jamais morre!
A poesia sempre fica.

Cisnes no lago

Debaixo das árvores quase nuas
Longe das luzes da rua
Junto dos patos feios
Que cresceram e viraram cisnes negros
Nos banhamos no frio da noite
Esperando acordados
O Sol da manhã
Para esquentar o sangue vivo
Que esfriará mais uma vez
Com a sua morte

domingo, 5 de junho de 2011

Durante a friagem

Um vontade de chorar sinto
Quando sinto neste frio
A mãe preta amamentando
Uma criança preta de pedra
Naquela mesma praça
Em que as prostitutas
Cobriram todas as suas vergonhas
Com poucos panos que tinham.

Cobriram também
As tetas
A friagem que sentia
A mãe preta.

Sede de significados

Nunca aprendi a comer de hashi
Que num bar de esquina
Preferia ouvir rock’n roll
Só para ser diferente
Dos que gostavam de comer sushi.

Sempre errei na aritmética
Mas as letras tinham um mistério
Numa carteira carcomida pelo cupim
Em que risquei com um canivete
Meu primeiro poema.

Depois
Por falta de papel
Poderia escrever no corpo dela também
Um poema inteiro
Só para não perder o momento
Em que as palavras saltam
Sem impedimento algum.

Por isso as palavras
São contravenção!

sábado, 4 de junho de 2011

Um homem velho comeu um Bem-te-vi

quem poderia impedi-lo
— magro, vivaz e
sem paradeiro

os nós dos dedos
grossos os gravetos
da armadilha
a fome

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A loba de Roma

Quantas tetas tem o Estado
Nacional
Carreirista profissional
Jurídico e administrativo
Todos querem um pouco mais.

Pobre diabo vagabundo

Quando numa ladeira subia
Descia numa outra um mendigo
Maltrapilho que levava um saco.
Era frio esta tarde!

O mendigo que nada fazia
Apenas pedia
Um pouco de dinheiro
O suficiente para tomar banho
O pouco que ele pedia
Não tinha em meus bolsos
E mostrei o que tinha
E ele pediu
Foi quando disse:
Só tenho isso
Se lhe der isso
Nada mais tenho.
Era frio esta tarde!

O mendigo que nada tinha
Pedia
O outro que era eu
Do pouco que tinha
Se desse
Nada mais teria.

Continuei subindo a ladeira
O mendigo
Continuou descendo a ladeira
Sem fazer força alguma.

A pedra do tempo

Impregnado nas pedras lisas
O limbo se torna eterno
Como fosse parte daquela
Num jardim mal cuidado
Que não requer mais
Atenção alguma
Do que o tempo se passando
Em instantes
Numa batida do orvalho
Furando a argila
Num furo sem volta.

Sensação das tardes outonais

Chega um tempo em que estamos sós
Sem que algum motivo exista
Para incomodar
Nem mesmo incomoda a batida do martelo
Que penetra pela frieza da tarde outonal
Em nossas veias cada vez mais estreitas.

Que alívio é sentir o vento da liberdade
Alisando o rosto sujo de poeira
Que sopra insistentemente nesta cidade.
Perder-se no traçado destas ruas
E ir tecendo um tecido fino de sutilezas
Como uma aranha em sua lida
Tornando a vida mais intensa
Em cada esquina vivida intensamente
Todos os amores e dores sentidos.

Ainda vejo pelas ruas da existência
Pegadas orgânicas ainda frescas
Num caminhar errático que avança
Entre avanços e recuos
Numa direção que se repete
Por medo de uma direção diferente.

Quando se faz da solidão um amigo presente
Principalmente em tempos de viagens ao fundo
De uma galeria cheia de vitrines
Em que as atrações são personagens
Com rostos pintados e bocas vermelhas
Que dançam um folguedo conhecido
Podemos rir mais uma vez
Podemos chorar mais uma vez
Naquela platéia cheia
Mas apenas uma cadeira ocupada.

Somente aqueles que se perdem
Podem encontrar em qualquer lugar
Que seja
Que nunca saíram do lugar
Que sempre viveram
Na mesma casa de sempre
Um portão alto guardado
Por um único cadeado.

terça-feira, 31 de maio de 2011

De quem se perdeu na Paulista

Nada mais existe de paulista
Do que a Avenida Paulista.

Em cada parada do farol
Também pára de bater
Batidas cardíacas
Em ritmo sincopado
Ritmo da própria cidade
Com todas as caras do mundo
Lá no fundo
Mais profundo
Desta alma solitária
Que vê sombras em cada esquina
Perdidas em cada tijolo que se levanta
Nos pés enfiados em botas de aço
Que calçam as moças de salto alto
E batom vermelho nas bocas.

Nada mais existe de paulista
Do que a Avenida Paulista.
Que um dia perdi-me nas galerias
E perdi toda a minha vida
Procurando por um livro
Ainda não escrito.
Mas achei a alegria de continuar
Procurando
Pelas prateleiras da existência
Alguém que procura pelo mesmo livro.

Nada mais existe de paulista
Do que a Avenida Paulista.
Quando se procura café amargo
Para adoçar a alma
Que não se cansa de procurar
Encontrando pelas esquinas
Aquilo que não se procura mais
Um amor que deixou de estar.

Nada mais existe de paulista
Do que a Avenida Paulista.
Nenhum ônibus atrasa
Nem o relógio daquele prédio
Atrasa
E cada vez ficamos mais velhos
E continuamos fazendo mesma coisa
Pensando fazer pela primeira vez
Mas a Paulista continua
Pulsando forte nas veias
De quem um dia nela se perdeu
Uma vida inteira.

Brinquedos de um dia

Houve um dia
Houve uma história
Uma hora em que
Brincamos com os mesmos
Brinquedos
Passou-se o tempo
E o brinquedo passou também
A vida passou
A juventude passou
Passou Iracema
Joana e Filomena
Passamos manteiga
Comemos bolacha maisena
E de repente num velho baú
Os brinquedos saíram de uma vez
Sem que ninguém mais brincasse
Ficaram ao relento
Para a posteridade
Calcificaram
Para que ninguém
Brincasse mais.
Mas um brinquedo ficou
Que guardo comigo
Esperando que um dia
Alguém se interesse também
Um brinquedo que brincamos
Um dia.

Um olhar não dado

Nenhuma maçã vermelha
Seja ela saborosa
Seja ela atraente
Será suficiente para
Demover um coração
Que não pode mais sofrer.
Quem provou uma vez
Outra vez não terá vez
Quem sabe ainda aconteça
Pois nenhuma certeza
Existe quando os olhares
Não podem mais dissimular
E todo olhar não dado
Esconde em si um turbilhão
Prestes a explodir.

Sonho

Quando sonho,
Sonho com a realidade
realidade e sonho...
Não sei se ao nascer, acordei de um sonho,
Ou comecei a sonhar
Pois ou sonho que fico acordado,
Ou acordo de um sonho!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Palavras fugazes

Que linguagem pode ser
Eficiente
Para dizer algo mais próximo
Daquilo que se pretender dizer
Se toda afirmativa
Pode ser falha
Se toda negativa
Pode ser falha
Assim deixemos
Que as palavras livremente
Digam o que somente as palavras
Possam dizer em total ambigüidade.

Uma porção de farofa

Naquela encruzilhada há
Uma travessa de farofa
Toda vez que passo por ela
Que lado devo ir?
O meu lado direito
É o esquerdo dela
O meu lado esquerdo
É o direito dela
Somente os meus pés sabem
Sem se importar
Se tenho tempo para pensar
E se penso muito
Nada mais faço
Do que continuar parado
Na mesma encruzilhada.

Ainda em meus ouvidos

Meus amigos se foram
Foi-se minha memória
Ana Maria é apenas um nome
Que outrora ouvi
Mas agora nem sei mais
Quem foi Ana Maria
Se foi uma figurinha
Esqueci
Se foi um retrato de folhinha
Esqueci
Talvez seja a marca de uma bolacha
Que sonoro ficou
Soando em meus ouvidos,

Que me importa se um dia
Ana Maria cruzou a minha vida.

Os olhos de peixe

Pela Avenida Paulista vivi
Em cada esquina vivi
Respirei todos os ares
E naveguei em todos os mares
Numa multidão de peixes
Esbugalhando os olhos
Arregaçando as asas
De uma gaivota sem rumo
Que perdeu as esperanças,

Mas continua vivendo
Por teimosia
Apenas por teimosia

terça-feira, 24 de maio de 2011

Azul-claro

Na esquina onde era não parar
sob uma sombra perfurada de árvores
- um fusca novo como se fosse
naquele lado calmo da rua.

Dentro, num olhar vago um homem velho
duas poças refletidas - viés de olhos

(Silêncio móvel)

- entre as mãos e o círculo volante,
bem segura, uma lata de cerveja. E é tudo
e isso é tudo pra quem passa...

八公

Olhar distante
Olhar concentrado
Tudo passa e nada vê
Mas tudo vê, do que se passa
Amores eternos
De uma noite apenas
Amizades breves
Vidas longas
Tudo passa,
As tristezas e a solidão
Como as ondas
Como os ventos
Só resta aquilo não vivo
(Que o que é vivo passa, também)
O corpo de pedra
Guarda do herói adorado
Apenas os olhos brilhantes
Da triste esperança
Que assombra eternamente
O (bobo) amante abandonado.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Sabe

Quando a árvore libera
no útero da ventania
a última folha

que desce ao fundo
como uma pedra achatada
caída num lago escuro

e lá coberto de outras
tantas formas secas,
se estreitando e a crepitar no
passo da raposinha de olhos grandes

sabe

quando de tão seca
quebrar seja a última paz

e em tantos cacos e nervuras
chegar o pó - que a espera.
e de uma única face com a terra
regar com lágrimas que ouvem...

...

o pó se irmanando ao pó
no breu mais escuro que olhos vagos,
apenas o cheiro fresco se suba propagando
nos redemoinhos tão comuns...

— quando alcançar

e este, for a mensagem que
mora entre o olor e o vento — esta
será a casa - a realização

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Imaculado

Branco no Arouche
são aves encardidas
Atrás da Sé estátuas
prostitutas em alvíssimos panos

Mas
lá na República
o pequenino Raul
enteado de Negro João
ainda não sabe que é branco

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Com frio na alma

Nestas noites de grande frio
as artérias congelam-se
sem que possamos
esquentar a sola dos pés
endurecidos
nas botinas de couro cru.

Se pudéssemos esquentar
um pouco que fosse
uma porção que fosse
de nossos corações
o frio não seria tamanho
como diz a moça do tempo.

Minha velha casa

Onde antes havia
alegria das crianças
nada mais se ouve
pois crianças não há
cresceram e se foram.

Em cada canto se ouve
uma voz que antes havia
silenciosa marcada nas paredes
como um fantasma
apagado no tempo.

Agora
ressoa como um murmúrio
uma voz rouca
sem força
quase desfalecida.
É voz de meu pai
que nunca foi de falar muito
nem contou histórias heróicas
mas de todas as histórias ouvidas
a história dele
é a mais bonita.

Nem por isso será eu
a contar!

Mensagem sem carteiro

Quantas cartas escreveu
em vão escreveu
pois destinatário não havia
poderia ter sido Juliana
mas também Fabiana
quem sabe Filomena
poderia ser a faxineira
a lavadeira de roupa
Maria das Dores
também
Maria dos Prazeres
nada disso havia
Por fim sem que alguém
pudesse receber
queimou todas as cartas
passou um tempo sem escrever
depois veio a tristeza
seguida de imensa solidão.

Para vencer a solidão
mais uma vez
passou a escrever
cartas que nunca foram
enviadas.

Enquanto escrevia
em todas elas via
uma cara nova
que só havia em
suas cartas.

Onde estará Ana Maria

Foi Ana Maria
a mulher de minha vida
com ela aprendi a ler italiano
aprendi a comer macarronada
com ela fiz a primeira comunhão.
Um dia Ana Maria se encheu
se foi como chegou
não deixou endereço
não falou se voltaria.

Mas continuo me encontrando
com Ana Maria
não mudou sequer
um gesto sequer
sequer deixou de falar
comigo.
Ana Maria vive
num aquário bem fundo
numa caverna funda
de uma sombra
que pensei ser eu.

Da terra em que nasci

Sempre quis sair daqui
ir para outras terras
onde o sonho tivesse vez
onde pudesse escrever
umas letrinhas fora de linha
andar pelas ruas quando
a vontade chegasse
e descansar numa mesa
de bar.

Sempre quis sair daqui
mas nunca dei um passo
sequer
da terra em que nasci
onde a vida sonhada
é viver
e querer sair.

Como podemos sair
se nada se encontra fora
como se o fora pudesse
existir?

A vida balançava

Numa cadeira de balanço
o tempo passava
enquanto passava a mão
nos pelos de um gato
enquanto tramava a vida
num longo bordado
que nunca acabava.

Num certo momento
veio a dor nas costas
veio também a hipertensão
veio uma vontade grande
de não fazer nada
apenas deixar a cadeira
balançar.

Encontrando demônios

Que demônios
encontrarei pelo caminho
serão alados
serão enrabados
pouco importa o que sejam.

Poderei tomá-los como mestres
aprenderei a arte da tolerância
ainda que tenha o corpo surrado
não revidarei
assim em poucos instantes
nada mais poderá incomodar
que de cansados
quedarão sentados
não haverá vitorioso
nem perdedor
apenas a sublime contemplação
de um rio correndo rápido
sem que um seixo sequer
deposite limbo.


Serei totalmente livre
passeando pelos campos
de vegetação rasteira
sentindo o vento no rosto
batendo com as mãos
no trigo amarelando
diante do sol rebentando
as cabeças de cabaça.
Se o céu parecer nublado
não me importa
Se as águas inundarem os arrozais
não me importa
Por onde a vista alcança
sempre haverá uma luz radiante.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Companheiros de outras horas

Onde andarão afinal
Meus velhos companheiros?
Um se tornou dentista
Outro funileiro
Marinheiro
Cozinheiro
Um deles foi ser professor
Aquele outro morreu morto
De um tiro que levou
Não de um ladrão qualquer
Foi de um marido enciumado
Que lhe roubou a mulher
Mais um outro foi-se embora
Em outras terras bem distantes
Onde o sol nasce primeiro
Onde o mar se move por inteiro

De mim que me resta dizer
Não sei no que me tornei
Sou uma pergunta sem resposta
Um caminho sem retorno
Um verso que ausente espera
Um momento para se por dentro.

O homem debaixo

Ninguém se importa mais
Se o homem debaixo da ponte
Sente frio
Se o homem debaixo da ponte
Sente alguma coisa.

De todos os homens
Quem não sente coisa
Alguma
São homens e mulheres
Que não têm preocupação
Com que outros sentem
Pois todos têm a liberdade
De sentir
Frio
Ou ainda assim
Calor
Das paredes de suas casas.

Somente o homem
Debaixo da ponte continua
Sentindo frio
Que faz tremer
Que faz bater os dentes
Do mesmo homem
Debaixo da ponte.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O homem que vendia

De longe se ouvia
Aqui
De longe vinha
Devagarinho
Era o homem que vendia
Biscoitos de polvilho
Era um homem preto
Era um biscoito branco
Era o homem que tocava
Uma flautinha de plástico
Era o menino que corria
Ligeiro com suas pernas de asas
De tanto fugir das reguadas
Das freiras de manto negro.

Menino que não existe mais
Homem que nem sei onde anda
Se morreu não anda mais
Se vivo ficou
Em outra vila pode estar
A vender biscoitos de polvilho?

Ao fundo do vale

Que pode mais incomodar
Do que uma ruga que não estava
Perdida em qualquer canto
De uma cara antes lisa
Mas veio uma chuva de granizo
E cavou fundo uma vala
Que escorre lágrimas
Por não ter vivido.

Não é o tempo que passa
Não é a vida que passa
Quem passa é o trem da zona leste
Que não atrasa mais
Um minuto sequer.

domingo, 15 de maio de 2011

O mundo gira

Gira o pião
Giramundo
Gira todo mundo
Girassol
Gira a vida
Gira a roda
Roda gira
Rosamundo
Bem imundo
Bem no fundo
Deste mundo
Raimundo
Era o nome
Que faltava
Que faltava
Neste verso
Que termina
Desde já.

O esquecimento possível

Alguns acontecimentos
Das partes compartilhadas
Não se esquecem.
Apenas fingimos
Que o esquecimento
Seja uma condição possível?

Dia da Mãe Preta

As mães pretas continuam
A amamentar em suas tetas
Uma infinidade de meninos
Sedentos de leite gorduroso.
Podem negar
Podem desmentir
Podem falar mal
Afinal todos querem
No estadual
No federal
Mamar continuamente
Até que a mãe preta
Seque totalmente.

Silêncio que fala

Ainda que nada diga
Nada parece ser mais
Significativo que este imenso
Vazio
Ausente de palavras
Em que cada nada
Pode ser possível
Uma infinidade de sentidos
Cuja representação
Nunca poderá ser.

Ainda que a simpatia exista
Distante fica
Um olhar rápido
Fugidio e imediato
Como faísca se vai
Riscando a superfície lisa
De um mármore.

Como nunca te conheci
Como agora
Agora é apenas um instante
Que foi embora
Deixando atrás uma poeira
Fina que se acumula
No mais fundo poço
De uma existência fugaz
Que ninguém acredita mais.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Carta para a mariposa marrom

Olá borboleta marrom. Quer ser minha amiga?

É que ontem eu te vi na parede da sala e hoje na parede do corredor. Acho que você deve gostar desta casa e ainda mais de paredes brancas, né?

Como? Você não é uma borboleta?
Ah! Uma mariposa!

Senhora mariposa, tenho duas gatas em casa. Sei que a relação das mariposas com os gatos não é muito boa, mas pode ficar tranqüila que estas duas são preguiçosas.

Bom, fique a vontade que a casa é sua.
Pouse onde bem entender.

A história do cachorro

Todo dia uma história diferente
Contada pela matéria amorfa
Do que um dia foi um canino
E agora se desfaz
No canto de uma avenida
Que foi palco de sua travessia
Para outro lugar
Que faz a mente do homem
Divagar devagar
Nas sombras de uma dúvida
Que nem mesmo o cachorro
Jamais saberá

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Treze

Quero gatos pretos,
E uma escada bem grande
Pra passar por debaixo
Com sapatos trocados
Andando de costas
Com crucifixo invertido
No peito estampado

Lua cheia?

E na cidade grande
A única matilha que se ouve
É o vento

Hanami

As flores de sakura em Fukushima irão florescer?
Como será o rosado florescer perfumado delas?

domingo, 8 de maio de 2011

Sopra a brisa fria

Nestas noites infinitas
De outono
Fundo cinza de um céu
Prestes a desabar
Sobre os nossos ombros
Pesado seria se não pudéssemos
Suportar a mais leve dor
De uma ilusão que se acende
Numa chama
De uma estrela perdida
Prestes a congelar-se.

Todo fogo
Em pouco tempo
Há de se apagar
E assim a vida
Continua numa marcha
Em que conduz
Não a minha vida
Mas a minha estrada
Incerta
E insegura
Mais do que nunca.

Diante a incerteza
Como é fresca a brisa
Que roça em meus pelos
Em todos os meus cabelos
Que outrora havia.

Zoo

Sorvete gelado
Crianças correndo
Olhar mareado

sábado, 7 de maio de 2011

Rua só

Sou eu que caminho a rua
Ou a rua que me caminha?
Na noite escura
Das poucas luzes amareladas
Onde o vento gelado do outono
Me faz só
Da solidão que não sei se é minha
Ou se é da rua

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Olhos atlânticos

Por aqueles olhos
Imensos
Um mar inteiro inundou
Com o azul translúcido
Afogou-me.

Quero para mim
Somente para mim
Nenhum outro me serve
Se assim for meu destino
Mal destino
Que perdeu tudo que tinha
Pelos olhos que não merecia.

O esquecimento que não acontece

Por um momento
O esquecimento é a solução
Como pudéssemos ignorar
Os fatos
Os retratos
Como pudéssemos simplesmente
Fechar os olhos
Para não ver
Mas quando mais fecho os olhos
Outros olhos abrem-se
E nada mais pode ser ocultado
Neste jogo de minha infância
Jogo de esconde-esconde
Em que o escondido sempre
Perde
Pois não há esconderijo
Suficiente
Na face da terra
Que possa servir de abrigo.

Sem que o esquecimento
Seja possível
Nem abandonado
Conviver com a lembrança
Sem muita atenção
Não ignorado
Não valorizado
Viver num fingimento
De que o rosto conhecido
Não passa de desconhecido
Nos torna atores de uma vida a toa
Palhaços de um espetáculo
Em que ninguém mais ri
Sendo que esta existência
Perdera totalmente a graça.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Rodopia em redemoinho

Meu irmão jogava pião
Que rodopiava
De uma corda esticada
E em alta velocidade
Que rodopiava
Furando o chão
O chão de terra e areia
E a vida também girava
E os olhos giravam
Sem se deter num ponto sequer
Todas as cores
Todos os sabores
Amores profanos
Insanos alguns
Malditos outros
Benditos nenhum.

Assim a vida passava
Na calçada passava
A menina que se tornou
Mulher
O menino continuou
Menino
Só não aprendeu
A jogar pião.

Até mesmo o amor passado
Não há de retornar
Apenas passado
Uva passa passada
Por falta de opção.

Por fim rodopia
Nada fica
Como nunca ficou
Um sinal apenas
Dos passos dos pés
Pisados na areia fria.

Ainda que seja assim

Qualquer amor que fosse
Poderia ser pequeno
Menor ainda
Poderia ser gordo
Desajeitado
E aleijado
Vagabundo
E enjeitado
Desde que fosse
Alguém que fosse
Somente para ela.

Cinco de maio

Carpas dançam no vento
Pai e filhos lá no alto
Mãe enrolando moti

--

Semana de folga
Luzes apagadas
Luto dourado

Maio

Primavera adentro
Cerejeiras esverdeadas
Vento gelado

"- Ai que preguiça!"

Macunaima, ao nascer.

terça-feira, 3 de maio de 2011

De onde vem esta canção

Num canto da noite
Um solitário homem da rua
Sem família
Sem amigos sequer
Apenas um cão
O acompanhava
Na mão um pandeiro
De couro ressecado
Uma canção sem nome
Cantava
E tocava seu instrumento
E um sorriso nascia
De sua face entristecida
Cantava a saudade
De uma tal de Mariazinha
“Mariazinha onde andará
Quem sabe numa nuvem
Quem sabe na cauda do vento
Não importa onde andará
Mariazinha agora você é minha...”

Assim o inverno chega

Ainda que o frio congele meus ossos
E minha boca endureça
Em algum canto de minha existência
Uma pequena chama tremeluzente
Há de afastar o fantasma da solidão.

Diante deste calor
Possam aconchegar-se
Aqueles isentos de amigos
Ou dos amigos que se foram
Das mulheres que se foram
E foram também todos os sonhos
Num relance rápido e sinuoso
De uma vida que se extingue
Em cada noite de sono.

Esta vida cuja chama
Alimenta um pavio curto
Cada vez mais sem combustível
Azeite que umedece os lábios
De fala suave
Dos beijos que foram do passado.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Temores que me perseguem

De todos os santos que havia
Havia um
Que causava uma inquietação
Seu corpo flechado
Agonizante delirava
Enquanto o sangue jorrava
De suas feridas.

Até a ferida que havia
Em meu joelho esquerdo
De uma ralada no asfalto
Num carrinho de rolimã
Não doía tanto assim.

O que doía mais
Era o olhar de Margarida
Mulata que cuidava de mim
Em desaprovação
Às minhas faltas nas aulas
De religião.

O que temia mais
Não era ir para o inferno
Que nunca entendi bem
O que temia era morrer
E não ter onde ir.

Viagem ao longe

Se tivesse que me ir
Para um lugar distante
De meus amigos não me despediria
De meus inimigos
Quem sou eu para ter inimigos?
Iria sem despedida
Iria para as areias do Deserto de Gobi
Onde o calor ainda brilharia
Sobre os cristais aos pés dos camelos
Estes continuariam caminhando
Sem se deter jamais
Cujos rastros logo apagariam
E logo seria esquecido
Livre para alcançar a estrela
Do oriente
Atrás de uma duna
Sonhada sem nunca ter saído
Daqui.
De onde nunca arredei pé.

Minha flauta de plástico

Mais importante do que viver
É aprender a tocar flauta.

Nunca toquei nada
Nunca pintei nada
Mas tive amores
Grandes e passageiros
Pequenos e sorrateiros
Por estar preocupado demais
Nestes assuntos do coração
Esqueci-me de viver.

Se pelo menos tivesse
Aprendido a toca flauta
Minha solidão seria companheira
De uma música inventada na hora
Uma nota de jazz de um negro
Enchendo as bochechas de um sopro
Capaz de encher meus pulmões de vida

A vida é uma nota de jazz
Breve
Imensamente breve e bela
Soprada com toda a energia.

Passou mais rápido

Quanto tempo perdi
Procurando por algo
Que sempre tive e não sabia

Quanto tempo perdi
Estudando economia
E gastei tudo que tinha
Num bar de esquina

Quanto tempo perdi
Perseguindo as andorinhas
Que assim bateram asas
E se foram sem olhar para trás.
E a felicidade não passava
De pura fantasia
Confete atirado num carnaval
Passado
Quando percebi
Nada mais restava
Do que o vapor de uma
Chaleira levantando a tampa
E apagando a chama.
E a vida se foi
E não vivi.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Espelho de bolso

No espelho de bolso
Tenho um rostinho
Com que gosto de conversar
É sempre ele que eu clamo
Quando quero chorar
Ou é pra ele que eu peço
Pra ajeitar meu sorriso
Ou cutucar meu dente do siso
Que também dói no rostinho
Do meu pequeno espelhinho

Lua

Pela noite sigo com os olhos
Caçando a beleza outonal
Formosura que brilha linda no céu
Com formas delirantemente prateadas

Se esconde lá
Se esconde cá entre as nuvens
Fazendo proposital charme
Que enlouquece a vista

Confunde a língua e o pensar
Deixando as ferramentas do homem
Incapazes de compor
Poemas sobre sua beleza
Redonda e prateada

Lá se foi novamente, entre as nuvens!

terça-feira, 19 de abril de 2011

Haikus

Trânsito infernal
Borboleta no vento
Radial Leste
(dedicado à todos os amigos do templo)

Na calçada, ali
Amiguinho sem dono
Gatinho morto

Agora ou jajá?
Ansiedade grande
Final de aula

Você já chegou?
Passou o tempo, nem vi:
Cabelo branco

Olhos nos olhos,
Esfrega, insinua:
gato quer leite.

Jardim já seco
Borboleta laranja
Caneta e papel.
(dedicado aos amigos do Muro, borboletas laranja num jardim já seco)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Negra neve

No campo coberto de neve, disse o escaravelho à garça branca: gostaria de viver num certo lugar, nem futuro, nem passado, num lugar que é quando não estou aqui. A garça disse: é aí que vivo. E sem hesitar sorveu o pequeno inseto através de seu bico comprido e o digeriu. Mas antes, a paisagem engoliu a garça.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Jogos da vida

Aprendi a jogar amarelinha
Perdia sempre.

Aprendi a jogar bate-caixinha
Perdia sempre.

Aprendi a jogar xadrez
Perdia sempre.

Aprendi a jogar esgrima
Perdia sempre.

Aprendi a jogar jogos do amor
Continuei perdendo.

A vida é um eterno jogo
Que se joga para perder...

Jogos evitados

Se os olhos cruzassem Tudo seria revelado. Mas nenhuma revelação Seria capaz de suplantar Tamanha sedução Do próprio segredo!

Silenciosamente

Quando nada mais temos Que dizer Então podemos mais uma vez Silenciar nossas bocas. Só não podemos Silenciar o fogo que arde Nos olhos Que sempre quer dizer algo.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Cansei, cansei-me e cansei-vos

E eu,
sempre tão disposto,
sempre tão ávido
(de estudar, aprender, ouvir)
sempre tão observador
Cansei, e pior:
Cansei-me de tanto ser
Sempre tão disposto e ávido.
Cansei, cansei-me e cansei a outros
Com meus apontamentos, críticas e sugestões
(tomadas por bravatas baratas de esquerda barata)
Qual a razão de tudo? Pecha de bravateiro?
Volto ao axioma:
Cansei-me, logo calo-me.
Só agora, enfastiado e farto de estar cansado,
Cansei-me do silêncio.
Diabos! Pro inferno as sugestões e o mero silêncio!
Nem raiva, nem depressão, sequer uma bufada de indignação...
Quero aprender latim, e falar sozinho uma língua morta!
Que diferença fará? Não sei... mas fará.
Nojo e desprezo são negativos? Depende.
Alegria e aceitação são positivos? Depende.
Seja o que for, que não seja impositivo...
E eu,
que sempre soube finalizar meus escritos,
Este não sei como acabar.
Que seja.

domingo, 3 de abril de 2011

Louco e presidente

No cortejo
De um ex-vice
Ex-vivo
Presidente da república
Aquele homem
Isolado na multidão urbana
Num dançar louco e frenético
Nas músicas dos automóveis
Nunca viu aquele presidente
Que nunca viu aquele homem

sexta-feira, 1 de abril de 2011

sábado, 19 de março de 2011

Irrealidade da vida

Quando acordo
E meus olhos sentem
O brilho do sol
Cada vez mais
Os meus olhos ficam
Cegos
Por um exagero
De informações visuais
Que numa confusão
Confundem
E perdido dentro delas
Sou apenas uma borboleta
Passando diante
De um bosque em floração.

Quando acordo
Um exagero de realidade
Queima pelo asfalto
Numa tarde de verão
Levantando vapores
De um petróleo viscoso
Que gruda em minhas botas.

Quando acordo
Deixo uma outra realidade
Menos impossível de ser vivida
Em que outro ser
Caminha feliz e na liberdade
Habita seu mundo idílico.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Perigos da vida

Uma falta de consistência
Nos passos em que afundo
Mais fundo no barro da existência
Meus pés enfiados em botas
Que esmagam meus calos
Mal formados
Cuja calosidade maltrata
Este corpo em decadência.

Firmar os pés
Onde firmeza alguma
Tem qualquer validade
Como a pisar em nuvens
Nenhuma solidez acontece.

Viver
É correr riscos
De um mundo cada vez mais
Desconhecido
Em que somente os sonhos
São possíveis
Diante da impossibilidade
De uma vida concreta
Em vias de concreto
E cimento armado
Que de duro trincou
Ao menor abalo
De um terremoto de emoções.

Ainda um sonho

Não sei que imagem são estas
Serão estas de um jogo eletrônico
Dessas que brincam as crianças?
Que enfrentam monstros espaciais
Godzilas que chegam do mar
E em instantes destroem a cidade
De Tóquio.

Não se acredita jamais
Que as águas vindas do mar
Possam de fato
Tornar a terra mar
Arrastando barcos
Das casas que havia
Nada mais havia mais
Do que escombros arqueológicos
Do que foi um dia
Uma vila de pescador.

Minha oração é vazia
Silenciosa neste instante
Minha oração é passageira
Como passageira é a vida.

Problema do outro

Uma enxurrada avança pelas terras
Uma enxurrada revela tensões
Descobrindo por onde passa
Um sentimento de medo
De ser engolido de repente
Pelo desconhecido fluido líquido
Que mata e faz nascer também
Um ato de complacência
E de tamanha intolerância
Que na indiferença
Nada mais faz do que
Nada fazer
Enquanto os mortos enterram
Seus mortos em covas rasas
Deixando com que uma maré negra
Penetre pelos arrozais
Nas frinchas da terra salgada
Para que nunca mais
Possa ser cultivada.

Mas a vida continua
Para os que perderam casas
Mas a vida continua
Para os que perderam filhos
Continua inclusive para os que
Leram jornais e telegramas
E minimizaram a dor
Pois a dor sempre foi a do outro.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Lembranças difíceis de apagar

Tão rápido
Como uma onda no mar
As manchetes já são poucas
Que restaram
Penduradas nos varais
Das bancas de jornal
Que vai caindo também
Da lembrança de alguns
Que pra lá nunca foram
E nunca pensam em ir

Mas ainda hoje
Mesmo que aqui dia
E lá noite
A lágrima ainda é mais salgada
A chuva é mais gelada
E o alimento escasso
Em um corpo
Que ficará marcado
Para jamais esquecer

terça-feira, 15 de março de 2011

Todos se foram

Quantas cegonhas tsuru
Terei que dobrar
Para um pouco que seja
Seja para sanar a dor
Daqueles que viveram
Para contar esta história.

O mar veio por terra
E de terra nada mais sobrou
Da terra tudo levou
Para o fundo do mar.

Agora vivem todos
Num castelo de conchas
Para nunca mais voltar.

Agitação do mar

Havia naquele dia
Uma agitação desigual
Anormal para os padrões
Normais da movimentação
Do mar
Que tomado de fúria
Voltou-se contra os homens
Que frágeis pereceram
Afogados
Para não contar a história.

A morte que vem do mar

Ainda que procure manter-me
Distante
Das águas que por lá passaram
Levando barcos e sereias
Por cima de suas ondas
Nunca fiquei tão próximo
Em meu silêncio
Que tudo desconversa
Para não se tragado de vez
Pelos redemoinhos
Que agitam minha consciência.

Meus olhos nunca choraram tanto
Pelas mulheres que afogaram
Seus corpos pesados de encantamento
Seus filhos que nunca serão adultos
Pelo impedimento de terem em suas bocas
O gosto do sal.

Todos os sonhos se foram
Numa maré negra de destruição.
Após a desdita nada mais resta
Do que enterrar em fossa funda
Os destroços de uma vida tranqüila.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Lá de longe

Um homem que caminha pela vida
E deixa a vida caminhar por ele
Sem as preocupações
Suas marcas tatuadas na pele
Pode fechar os olhos primários
Que jamais se perderá
Com os olhos verdadeiros
Guiados por aqueles
Que mesmo longe
Estarão sempre ao seu lado

Não mais Pacífico

Para alguns foi um dia normal
Para mim foi quando as terras e as águas
Levaram, não só meus sonhos
Mas o de muitas outras pessoas

E tão logo são enfeites nas páginas dos jornais
E tão logo são semblantes cabisbaixos
Vagando pela cidade desnuda
Que é mostrada sem pudor
Pela grande mãe sem misericórdia

domingo, 13 de março de 2011

Em profundo silêncio

Ainda que meu rosto
Nada mais revele
Do que um semblante
Branco e ignorante
Minha alma chora
Pelos mortos
E pelos vivos que sofrem
Tamanha destruição.

Uma parte de mim
Também morre
Nas águas em tamanha
Violência.
Em meu silêncio
A pulsão do coração
A dobrar repetidamente
Uma oração.

A invasão das águas

Que as almas levadas
Pelas águas do Pacífico
A inundar as terras baixas
Encontrem paz
Nas espumas do mar
E voltem novamente
A mergulhar nas profundezas
E silenciosas águas
Da inconsciência
Tranqüilas e escuras
Compartilhando com os peixes
Um eterno sono
E assim possam sonhar
E assim possam viver.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Acalanto sujo

Lambida de cachorro
unhada de barata
banho da chuva
beijo de sarjeta

Aqui, onde caiu a calçada
- que onde não havia -
Nessa cabeça esponjosa
mendigo e amanheço.

Sento
Como e
Durmo mendigo
Bebo.

Vagueio

(horas)



.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O home que gostava de ficar

Era um homem que gostava de viajar
Viajava, viajava
Sempre observando por onde passava
Olhava tudo, cheirava e tateava

Gostava muito de viajar
Mas, mais do que de viajar,
Gostava de ficar

Pra onde ele fosse
Onde quer que ele viaja-se
Lá, pra sempre, ele ficava

Até o final do infinito
Ele permanecia no mesmo lugar
E assim em todos os lugares em que ia
Chegava e ficava para sempre
Até mesmo para onde ele nunca foi,
Já estava lá para todo o sempre

Isso por que gostava de viajar
E mais do que isso,
Gostava de ficar