segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Altar da pressa

Galhos imensos
Hasteados ancestres se
entrelaçando como dedos

O calor incolor do sol
e um céu de clorofila

Mastreando o pescoço
feito árvore grandona
Ponteando surge o fruto
hora verde, hora maduro
hora verde, hora maduro

Altar da pressa.
Luminoso sinal.

Há quem olhe e pare
e há quem corra, só de ver
este fruto de olhar

domingo, 27 de novembro de 2011

Pelas vias da incerteza

Muito me diz
Este silêncio opaco
Deixando um rastro
De quem passou por aqui
Em cuja incerteza
Ainda paira o fantasma
Do medo
De ser mais uma vez
Verdadeiro
Em todo seu instinto
Marcando a pele
O dente canino
De sempre desejado

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Numa sala da farmácia

Numa farmácia popular
Havia numa garrafa
De minha infância
Uma cobra verde.

Ela vivia naquela garrafa
Mergulhada no formol
Nunca saia de lá
Fingindo-se de morta
Sem se mexer
E de olhos redondos
Envidraçados.

Contemplava o mundo
Minha passagem por lá
Naquele laboratório
Em que o farmacêutico
Preparava
Suas beberagens
Pós para curar feridas
Marcadas na alma
Das mulheres pecadoras
Que amavam outros homens
Que amavam outras mulheres
Que amavam a si próprias
Suas calças de marca
Seus penteados endurecidos
Por laquê.

Brinquedos atirados

Deixados ao relento
Os brinquedos não têm
Mais nenhum valor
Uma vez brincados com eles
São atirados ao relento
Até que a próxima criança
Chegue e brinque de novo
E quando a brincadeira perder a graça
De graça fica para quem encontrar
De novo
De novo começa a brincadeira...

Abandonos irracionais

Abandonado num dia de chuva
O cachorro não sente saudades
De seu antigo dono
Que agora sem dono
Tem toda a liberdade de viver
Na vadiagem das ruas sem lei
E morrer a cada momento
De um dia para o outro
E ninguém sentirá sua falta
Que um dia
Existiu um cachorro
Que tinha um dono.

Quem seria o cachorro?
Quem seria o dono?

Procura que não se cansa

Que palavra pode ser mais bela
Do que aquela que existe
Talvez seja aquela que precisa
Ser inventada
Na batida do coração
No sangue que circula
Percorrendo todas as artérias
Azuis e vermelhas
Oxigenadas
Carbonizadas
Nascidas
E morridas
No instante exato
Deste mesmo momento
Que não encontro
Palavra alguma
Senão o silêncio
Que contraria tudo
O que foi descrito
Num pergaminho
Perdido num mar
Que não existe mais.

domingo, 13 de novembro de 2011

Uma história não acontecida

Sem nada dizer foi-se
Numa ventania foi-se
Foi-se como isso tivesse importância
Como pudesse fugir
De um jogo de esconde-esconde
E assim refugiar-se num esconderijo
Bem longe
Como num dia apareceu
De surdina desapareceu
Apagando a cal impregnada
Numa lousa carregada de história.

Passagem da banda

Ainda em minha lembrança
De uniforme branco
Uma banda andava pelas ruas
E tocava uma melodia
Todos saíam para ver
A passagem da banda
A passagem da vida
E a vida passou...

Uma estátua de pedra

Naquela praça em que passava
Uma mulher nua de pedra
Sorria pela eternidade
Sem nunca mudar sua expressão
Lá estava
Ela
Nunca falava
Nunca reclamava
Mas continuava a sorrir
Um sorriso de pedra negra
Podia ser amada
Podia ser desprezada
Não mudava o sorriso lindo
No canto da boca
E assim permaneceu por anos
Do mesmo jeito
Enquanto a praça envelhecia
Veio um trator e tudo derrubou
Carregaram a mulher de pedra
Quebrou-se um dos braços
Esfolou uma perna
Enquanto sorria
Como nada tivesse acontecido

Em algum ponto da cidade

Os caminhos que cruzam
Minha cidade
Vão para todos os cantos
E para os cantos algum
Por mais que se caminhe
Não chegaremos jamais
A algum destino que seja
Pessoal
Por mais que tentemos
Tornar este caminhar
Um caminhar próprio
Será impróprio
Desejar um caminho que seja
Somente meu
Será teu também
Nenhum outro caminho existe
Além do próprio caminhar
Seja distante
Seja perto
Nunca sairemos do lugar
Em que sempre estaremos

sábado, 12 de novembro de 2011

Canto da terra condenada

As ondas que varreram Fukushima
Ainda continuam varrendo
As margens desoladas do Pacífico
E os arrozais contaminados
Por anos não mais produzirão
Enquanto as usinas radioativas
Continuarem vitimando
As mulheres que não se casarão
E as crianças sem nada saber
Numa praia qualquer
Continuarão a levantar
Castelos de areia
Ajudados por Jizo
Para serem destruídos depois

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Passarinhos

Passarinhos cantam invisíveis na árvore da praça
Só hoje parei para procurar
Mas só encontrei um passarinho
Que não sabe cantar

domingo, 6 de novembro de 2011

Pelas ruas de domingo

Sem se importar
Se hoje é domingo
Se isso realmente
Importasse
Dormia em seus trapos
O mendigo na rua
Abandonado por todos
Abandonado por mim
Que não pude nada fazer
Por isso fiz
Esta poesia
Para lembrar que havia
Um mendigo na rua
Um mendigo que dormia
Sem incomodar ninguém
Só eu me incomodava
Que havia
Um mendigo que dormia.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Batidas cardíacas

Nem sempre a esperança
É uma solução
Cuja espera pode estender-se
Pela eternidade.
O arroubo das paixões
Uma vez derramado
Escorre imediatamente
Para o ralo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma vida inútil

Que de bom fiz nesta vida
Senão errar pelas esquinas
Para ver sombrinhas azuis
Subindo ladeira acima
Em dias que não havia sol.

Um ato de esquecimento

Sei que vou esquecer
Das linhas bordadas
Por Ofélia
Só não posso esquecer
Daquilo que alimenta
Este constante viver
Com gosto de veneno
E cor maravilhosa.

De onde sopra o vento

Nenhum motivo para desespero
Quando uma apática indiferença
Possa causar danos incontroláveis
Mesmo assim o moinho de vento
Roda num leve soprar
Ao sabor salgado que sopra do mar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Silêncio cai devagar

Calar-se por momentos
É mais comprometedor
Do que todas as palavras ditas
Pois no não dito
Esconde-se aquilo que nenhuma
Palavra pode dizer.

Cidade passageira

Chovia naquela tarde
Incessantemente chovia
Pelas ruas desta cidade
Enquanto a vida passava
Passava urgente a mulher
Que perdia o trem
Era o trem que passava
Era também
Um tiro que passava
Um raio também
Veio a morte
Mas nada detinha
Daquilo que arrastava
E passava
Passageiro de passagem
Sem nunca se deter
Um instante sequer.