segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A história de meia vida

A cada dia de vida João colocava um tijolo no monte
Sem deixar passar um dia se quer
Os tijolos foram amontoados
E como não podia ser diferente
Um dia ele parou e reparou
Que na sua frente havia erguido um castelo

Chegava a ser assustador
João tinha medo de sua própria criação
De entrar e não saber o que encontrar
De deixar tudo o que conhecia do lado de fora
E passar pela porta sem ao menos olhar para trás

De forma tão repentina
Aquele sonho se transformou em realidade
E logo em incertezas
Que o apavoravam

Mas apesar disso
Muito estava em jogo
Não só para ele, mas por todos

Então, sem estremecer
Muito menos exitar

João se foi

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Acabou

Os livros se esgotaram
As palestras se encerraram
Os professores foram demitidos
As escolas fecharam
Os cursos foram concluídos
E os debates se calaram

Não há mais lugar para eu buscar
Não há mais lugar para eu fugir
Do real aprendizado
sentado

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Varais coloridos

Acima daquela linha da cidade
As pessoas penduram suas roupas
Coloridas
E outras descoloradas
Num varal em frente das casas
Sem pudor algum
Como tudo fosse permitido
Por um momento pensei
Usar roupas coloridas
Não ficaram bem!
Nunca fiz parte daquele mundo
Foi tão somente um delírio
Pois não posso ser alguém
Com camisas amarelas
Calças azuis.

Minhas roupas sempre foram
Negras.

Nada mais sobrou da areia

Tudo passou como tempestade
Deixando pelo caminho coqueiros pelo chão
Tudo foi destruição
De um castelo de areia
Que parecia indestrutível
Uma fortaleza em que o menino
Construiu com outras mãos
Pequenas de uma menina.

Nada mais sobrou
E a menina se foi
Brincar em outras praias.

Nunca mais se ouviu falar dela
Mas o menino continua ainda
Construindo castelos de areia
Mesmo sabendo que a qualquer momento
Vem uma onda maior
E nada mais sobrará
Nenhum castelo
Somente areia
Como sempre foi...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Um sorriso endurecido

Quando o sorriso não sai
Senão uma expressão apenas
De uma dor escondida por detrás
De uma face que não esconde mais
Tamanho desalento
Continuamos fazendo de conta
Que nada mais nos afeta realmente
Que nada tem importância mais
Que tudo mais não passa de passatempo
E passado para trás já fomos
Com outros igualmente perdedores.

Se ainda assim o sorriso surgir
Será menos de alegria
Será de saudade de um dia
Ter conhecido Mariana.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A chuva

A chuva é o choro do mundo
Choros de alegria e tristeza
Que alimentam os vegetais
E banham os animais

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O diabo e o sexo

foto: Bruno Mitih

Casa de Moacir, artista nativo da cidade de São Jorge, interior de Goiás. Tem como temas centrais religião, sexo e demônios.

Pessach

O que se passa
Quando aquilo que passa
Passa sem pedir passagem;
Passa sem sobre passo
Sobre um passageiro
Que, de tantos passos,
Tropeçou no calço
Quando, no encalço do tempo,
(Que passava apressado)
Observava a paisagem
Passando despreocupada,
Como sinfonia de um compasso
Que gira, traço após traço,
Um mundo tão abstrato
Que parecia nunca passar.

O que se há de passar
Quando todo esse espaço
Infinito porém escasso
Eterno, conquanto fugaz.
Quando todo esse paradoxo
De uma eternidade passageira
Que relutamos em aceitar
Finalmente resolver passar?

Sem olhar

Me embriagando da cor da uva
No céu pintado, percebido de repente
Num mundo frenético
Que nem sequer olhava
Aquele rubro cair solar
Nem sequer olhava
A nuvem dançando
Nem sequer olhava
Um pássaro pousando
Nem sequer olhava
O dia passando

Comparar e sentir

Ver e olhar
Sentir
Viver é, único momento
Impossível de ser achatado
Em palavras, curtas e insignificantes

Palavras são comparadas
Em seu universo dual
Vivências são comparadas
Em um limitador dual

Neste poema em caso
Limitador fenomenal
Da vivência

domingo, 5 de dezembro de 2010

Um presente de aniversário

Que posso lhe dar
Se não nada mais tenho
Tenho amor em meu coração
Nada muito interessante
Tenho um desespero inquietante
Nada muito interessante
Posso revirar meus bolsos
E tirar lá do fundo
Um mundo inteiro que inventei
Figurinhas do mundo animal
Uma vassoura de bruxa em miniatura
Uma moeda furada que nada vale
Um pedaço de rapadura.

Tudo isso posso lhe dar
Com todo o encantamento
Que ainda ofusca meus olhos
Enche um alforje que levo a tiracolo.

Que passa em minha frente

Cada vez que me encontro
Com as mulheres que conheci
Cada vez mais o devaneio se esvai
Como uma névoa que sobe e passa
Toda beleza se fora em instantes
Toda formosura não passa de uma lembrança
Melhor se fosse se não as encontrasse mais
Mas ainda assim não seria uma solução
Pois também a frescura de minha idade
Não passaria de uma ilusão.

Contando os dedos

Amigos
Contamos nas pontas do dedo
Assim disse certa vez um amigo.
Cada vez mais
Os números diminuíram
Sem que os dedos diminuíssem.

Para não desesperar
Cortemos os dedos
Ou paremos de contar.

Tomando bebedeiras

Meu amigo mais velho se foi
Tomou todas as bebedeiras
E não se arrependeu!

Nunca tomei bebedeiras
E continuo vivo
Apesar da hipertensão
Apesar do colesterol
Mas me arrependo
De não vivido ainda o suficiente.
Como invejo meu amigo mais velho
Só meus versos me consolam...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Apenas um único caminho

Nenhum caminho conduz
Naquilo que possa negar a vida
Pelo contrário todas as vidas
Caminham juntas em cruzada
Ainda que possam dizer o contrário.
Neste derradeiro caminhar
Nunca avançamos
Nunca recuamos.
Sem que pudéssemos dar
Um passo sequer
Onde o caminho não leva.
Caminhamos juntos
Sempre na mesma direção!

Calar é preciso

Quando as explicações são precisas
Toda confusão também é possível
Se as palavras não conseguem expressar
Um emaranhado de pontos vermelhos
Num céu infinitamente azul.

Algumas coisas não precisam
De explicação que nada explica
Além de dizer o mais obvio
Das futilidades.
Mas quando se cala e sorri
Nada mais diz
Do que toda a verdade
Que não necessita de explicações.

Um total desconhecimento

Quem diante de mim se encontra
Se nunca te encontrei antes
Se nunca te vi antes
Mas seu sorriso parece ter sentido
Em outros momentos vividos
Num sonho qualquer
De outro que tenha sonhado.
Nem sei como se chama
Como se a chama se incendiasse
Em instantes sem provocação
E reconhecesse um pouco que fosse
De uma emoção que se fora
Soprada em direção em que
Não mais me encontro.
Se uma alegria momentânea
Me assalta a alma desarmada
Em seguida uma tristeza profunda
Inunda toda experiência
Das emoções sentidas.

Quem diante de mim se encontra
Não sei seu nome
Mas seu sorriso...

Simplesmente fazemos

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Todas as pedras levadas morro acima
Todas as tardes sem que um minuto sequer
Parasse de mover as pernas
Seria a prova de fraqueza
Diante das incertezas
De um trabalho inútil.

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Como inútil podia ser o vôo do pássaro
Que cruza num instante o cinza do céu
Como inútil podia ser a dança flamenga
Numa tarde ensolarada
Numa taberna à beira da estrada.

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Os amores vivenciados não deixam saudades
Que se apagam no passado
Os rastros que se perdem na água
Do pato que nadou neste instante.

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Se nada disso fizesse
Todas as coisas inúteis
Teria-me esquecido de viver.

Das águas profundas

Desconheço totalmente o que se oculta
Abaixo das águas profundas de um poço sem fundo
Que existe no quintal amplo de minha existência
Quisera me perder num salto sem retorno
Mas meus pés não cedem um milímetro sequer.
Não por falta de coragem
Apenas pelas amarras que me atam
Numa emaranhada trama da vida
Em que sou apenas figurante.
Mas quanto mais me afasto daquele lugar
Mais me encontro em lugar algum
Por isso continuo a viver fora das águas
Ansiando todavia escorregar água adentro.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O urubu

Mamãe, quando eu crescer quero ser um urubu
Ser a sombra negra de asas abertas lá no alto
Ter a morte como vida e a vida, como morte
Ser o verso brutal da ausência
que a tudo espia lá do céu
E em círculos, ser a espera
a espera do inevitável, o certo.

Mamãe é isto o que eu quero ser,
a sombra magra de um anjo
Quero ser a noite estampada
na face luminosa do céu risonho
Ser o amor universal
pairando sobre o destino grato

Mamãe, isso é tudo,
mas se isto eu não for
e me acontecer de ser poeta
por favor me aceite

Esquelético e de andar desequilibrado.
Com a voz louca de milênios de gerações doentias.

Solitário no interior do ovo cósmico,
a estremecer com a explosão da energia galvânica
e a cegar com a luminosidade
nauseante dos raios gama.

Deixa-me perdido, e aflito,
Deixa-me entristecido assim para eu ser poeta

⎯ Poeta Grande


(homenagem a Augusto dos Anjos)








.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Canção do mendigo

Que existe de excepcional afinal
Se abaixo do mesmo viaduto
Passe ano todo engano
O mesmo mendigo continua
Naquele exato ponto
Sem se importar com o passar do tempo
Passado e presente de pouca importância
Para o mendigo de sempre
Que vive tão somente
Momento presente
Um cão sua companhia
Nada mais precisa
Até que a mulher se fora
E assim se consola
Tomando tragadas que consome
De cirrose hepática
Suas tripas já totalmente
Deterioradas.
Nem isso é motivo
Para morrer agora!
Por teimosia não morre
Não se morre no abandono
Mas se morre por falta de amor
Por isso continua ele
Amando as mulheres que teve
Que vivem agora
Todas elas num sonho
Sonhado pelo mendigo
Sonhado agora.

A arte subversiva

Parece-me bastante possível sustentar que a função da literatura como força geratriz digna de prêmio consiste precisamente em incitar a humanidade a continuar a viver; em aliviar as tensões da mente, em nutri-la, e nutri-la, digo-o claramente, com a nutrição de impulsos.
Esta concepção talvez inquiete os amantes da ordem. Assim como muitas vezes os inquieta a boa literatura. Consideram-na perigosa, caótica, subversiva.

POUND. Ezra, A arte da poesia – Ensaios escolhidos, São Paulo, Cultrix, Edusp, 1976, p.32

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Antes

Por favor me desconheça. É muito?
Nem sei mais. Mas faça esse favor
queira assim desde já ⎯ ouça
nem mesmo os relógios sabem do tempo
nem eu poderia pedir nada mais valioso

Me desconheça sempre antes da intenção
É pedir muito? Me olhe não me olhe assim
Não seja espelho, antes vidro, antes brisa

.

domingo, 28 de novembro de 2010

A beleza é de outro lugar

Nenhuma reconciliação é possível
Se impossível fosse viver sem beleza
Ainda que toda atenção fosse dada
Naquilo que fosse útil.

Nada mais inútil que o esforço
Em buscar uma felicidade
Que deixou de existir num mundo
Em que nenhuma beleza fosse mais
Possível.

Nenhum lugar para o amor
Cujo preço é padecer de um sentimento
Sem lugar neste mundo.
Somente existe nos corações
Dos tolos e doentes
Que vivem para sofrer.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O terceiro olho

Três segredos eu contei sem você chegar
⎯ os meus olhos fosforescentes ⎯
três chances de escapar da vida eram
três vezes, três vezes eu sorri sem boca

.assim foi

e senti o tempo vibrando minhas mãos secas
Sete flores em vão eu colhi com estes olhos sem você
⎯ e no fundo, no-fundo-no-fundo, o por-do-sol é como
piche sobre carvão ⎯ sim
foram três segredos sem ouvidos
foram três chances ao pó
e seguir alegre estrada era
arribar em bando dentro da ventania
sumindo cintilante sob o sol frio

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pergunta

Quando será que virá o desapego das antigas formas mistificadas para uma resignificação da realidade? Será que nessa mudança a realidade poderá ser percebida sem a conformação imposta pela cultura?

domingo, 21 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Um canto por Haiti

O que acontece nas terras do Haiti
O que acontece com as mulheres do Haiti
Senão a de continuarem a morrer
E seus filhos também
Enquanto nada mais se faz
Senão uma nota lacônica no jornal
Sem nenhum pudor
Como nada mais tivesse acontecido
Um pouco acima da linha do Equador.

Como nada mais importasse
Os olhos estão cegos para ver
Os ouvidos surdos para escutar
E o coração?
Parou de tocar
Como nada mais importasse
Com as mulheres do Haiti
Magras e sem brilho nos olhos
Que amaram seus homens
Que amaram seus filhos
Que não são amados por ninguém.

O que acontece nas terras do Haiti
Ninguém sabe
Ninguém toma conhecimento
Nem ao menos se importam
Que morrem
E devem ser enterrados
Pelos seus próprios mortos.

Ouçam o lamento
Das mulheres do Haiti
Ouçam
Apenas ouçam aqueles
Que tiverem ouvidos para isso.
Ainda assim
As mulheres do Haiti
Sorriem seus dentes brancos
Pois mais do que elas
Quem necessita de ajuda
São os que não estão no Haiti.

Bendito Haiti!
Dos deuses da África.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Palavras vazias 02

De beleza inigualável
De consoantes alinhas
A vogais desenhadas
Contínuas sem menor objetivo
Seguidas do pior significado
Sem dado
Sem nada
Se algo pra querer
Ser e escrever
Letras e letras costuradas
Atrás, umas das outras
Sem fio
Sem fio da meada
Sem nada
Vazia
Apenas bonita
E de que me adianta
Palavras vazias
Se elas nada preenchem
E sim são preenchidas com as idéias
Da mente
Que cada um tem uma
De forma diferente
Que completa
O vazio
Como a água que
Completa um rio

Um poema sujo

O que pode ser mais maldito
Do que a sinceridade das palavras
Dessas que saem espontaneamente
Que assustam
Que acusam
Que nos arrependemos depois
Por causa de toda a verdade
Afinal vivemos para mentir
E por isso medimos as palavras
E mentimos para nós mesmos
O desprezo de nossos sentimentos
Aqueles mais profundos
Alguns imundos
Sujos e carnais
Porque bonito é ser espiritual
Como no mundo dos anjos
Que não amam mais
Nem odeiam
Apenas obedecem.

Redemoinho de nossas vidas

Continuamos repetindo o mesmo
Movimento circular de sempre
Sem nunca sair do lugar
Rodopiando em roda
Até cansar as pernas
E quando cansamos
Paramos e ficamos pensando
Do erro que cometemos antes.

Num outro ponto
Novamente damos início ao
Movimento circular de sempre
Pensando fazer alguma coisa nova
Mas velho ficou antes de começar
Achando que antes erramos
Mas fazemos o mesmo
O mesmo de antes.

E assim vivemos
Repetindo sempre
Em redemoinho sempre!

Claridade ofuscante

Muitas vezes temos que
Fechar os olhos
Pois a claridade ofusca
E quando fechamos
Uma nova claridade
Clareia intensamente
O que antes escurecia
De podermos enxergar
De outra forma
Com as lamparinas internas
Sem medo de ocultar
Nenhum ser das sombras
Que saem das regiões cavernosas
Carregando suas armas
Uma imensa rede de pesca
E deixamos nos pescar
Sem medo de morrer na praia
E se morrermos sempre estaremos
Em nossa casa.
De onde nunca saímos
Nem nascemos.
Apenas seduzidos por uma fresta
De luz exterior
De uma luz interior
De uma luz qualquer
Caímos na ilusão
Pois luz
É mais escuridão
Que todo nosso raciocínio
Possa ter.
E quando pensamos
Clareamos a nossa mente
Para não enxergar mais
E toda confusão se torna
Latente.

domingo, 14 de novembro de 2010

Um poema irônico

Nada mais pode ser resgatado
De um tempo que ficou atrasado
Senão a imagem desfocada
De uma miopia sentimental
Que carece de óculos de grau.

Quando menos se espera
A poeira de uma saudade imensa
Chega de mansinho
Bem devagarzinho
E se instala em feridas ainda
Mal fechadas
Nunca resolvidas.

Nada mais resta do que sentir a dor
E perder-se em cada gemido
Silenciosamente sentido
Mas mostrando na cara
Um sorriso irônico de si mesmo.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sensação de impotência

Sensação de impotência

É de impotência a sensação
De, após caminhar um dia
Com uma miríade de sentimentos
E de experiências
Não poder mover um dedo se quer
Em pro da verdade
Em prol do meu juramento

É de impotência a sensação
Sentar e somente assistir
Sem poder jogar
E marcar pontos para ambos os lados
E marcar sorrisos em ambas as faces

É tão difícil
Entender
Viver e conviver
Ainda mais sem poder
Dissolver o sofrimento
Incrustados não sei onde

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Corpo

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1979. p. 22.

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo.

sábado, 30 de outubro de 2010

Cada um, cada coisa

Cada coisa em seu lugar
Cada cueca na gaveta
Cada um em seu lugar
Cada verso em cada linha.
Cada coisa que se vê...
Cada um com seus ''pobrema''
Cada ator em sua cena,
Cadê minhas cuecas na gaveta?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O esquecimento

Somente com o tempo
Traz novamente um vendaval
Cálido que cicatriza as velhas feridas
E cobre com bálsamo do esquecimento
Sem ficar nenhum escombro
Das ruínas que um dia fora civilização.
Onde o amor era lei
Mas por um desatino
Tornou-se bandido
Que na calada da noite
Roubava dos corações solitários
Um amor ainda não sentido.
O amor é uma impossibilidade
Num mundo que nega totalmente
As contravenções provocadas
Por uma vida injusta
Em que os pés pisam o concreto
Seco das lápides.

domingo, 17 de outubro de 2010

浄賢

Quando se tem os olhos transparentes
A mente permanece como um calmo lago
Imenso, eterno e imperturbável
E, nessa quietude, não há julgamentos
Na ausência de julgamentos, não surge a dualidade
Na não-dualidade, há apenas a sabedoria
Apenas a sabedoria existe
Sabedoria límpida e imaculada
Sabedoria pura.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Esperança também cansa

A esperança parece morrer jamais
Ainda que possamos desconfiar dela
Até mesmo contrariá-la por algum momento
Sempre ela retorna
Como retorna também o sorriso
Antes desaparecido da cara de tolo
Que pensa ser alguém especial.

Somente os tolos têm esperanças
Porque negam as relações interesseiras
Daqueles que sentem um medo profundo
De suas próprias emoções descontroladas
De um amor não resolvido
De uma vida em descaminho.

A esperança é uma droga que ingerimos
Para não morrermos de tédio.

Pela esperteza alguns morrem

Os espertos que me perdoem
Dessas de sobressair sozinho
Correr na dianteira como passarinho
Pode ser um grande desastre.

Quem anda na frente
Atrás de si uma multidão
Rola como rolo de compressão
Esmagando quem adiante se encontra.

Os espertos estão fadados
A serem atropelados.
Os espertos são tolos
Que pensam serem melhores
Do que os outros.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Expectativa infinita

Essa expectativa infinita
Foi derrubada pela música que meus ouvidos queriam escutar
Da sua boca fina
Poética e sábia
Que iluminou uma selva de conturbações
Abrindo caminha para eu enxergar
Que ela estava ali, sempre
No mesmo lugar
E que era eu que não sabia nem ler
Nem ver
Nem escutar

Acordes em desordem

Essas pequenas mãozinhas que escrevem
São fantoches de um mundo flutuante
Que não é habitado por ninguém
Só imaginado por alguém

Seus textos só são meros nomes
Enfileirados
Formando acordes
Desafinados

Que insistem em dizer que é verdade
Toda essa falsidade
De um mundo em desordem
Querendo impor ordem

Pois seus textos são só meros nomes
Enfileirados
Formando acordes
Desafinados

Que escrevem
Flutuantes
Por ninguém
Para alguém

Viver para perder

Você venceu
Ainda que use todos os argumentos
Ainda que use as armas que me restaram
Desarmado fiquei
Pois nenhuma arma é eficaz
Diante das falta de emoção
Desta armadura que traz
Envolta em seu corpo
Que rebenta as flechas envenenadas
Que um tolo ainda arremessa
Sabendo não ter efeito
Todo esforço só pode ser em vão
Toda paixão é uma batalha perdida
Num campo em que deita o trigo
Conforme a vontade do vento
Apenas do vento
Que brinca num passatempo
Qualquer
Sem respeitar a fraqueza
Dos eternos sonhadores
Que nada querem
Senão a liberdade de sonhar
Sem impedimento
Sem documento
Sem lei e sem rei
Numa terra de ninguém.

Insano momento insano

Ele atacou no interior
do interior
Das entranhas, viscerais
Sem deixar o controle
Nas mãos normais

Quem é ele não se pergunta
E sim de onde é ele
Que aferroa
Esquenta o sangue
Os olhos cegam
O corpo cai e definha
E a mente sai
Mansinha
Que no incontrole diz: saia! Não me atazane mais!
E então quer destruir o instante
E acreditando que é ali parada a sua salvação

Oh mente envenenada e inútil!
Que mal sabe o fim que terá
Se assim continuar
Embebedando e alimentando
Esse ser vulgar

domingo, 10 de outubro de 2010

L'Habanera

L’amour est enfant de Boheme
Il n’a jamais, jamais connu de lois
Si tu ne m’aime pas, je t’aime
Si je t’aime, prend garde a toi
Si tu ne m’aime pas, je t’aime
Mais, si je t’aime
Si je t’aime, prend garde toi
Si tu ne m’aime pas
Si tu ne m’aime pas, je t’aime
Mas, si je t’aime
Si je t’aime, prend garde a toi.

L’oiseau que tu croyais surprendre
Battit de l’aile et s’envola...

Carmen, de Georges Bizet

A modelo

O corpo macerado da modelo
Que revela nas profundas
Estradas da vida
De veias entrecortadas
A idade passando num instante
Não causa maior espanto.

Até mesmo a decrepitude
Da epiderme flácida
Possui em si mesmo
Uma beleza plástica
Que pára no tempo.

A crueldade da carne
Em constante transformação
De massa incerta que
Modelada nas mãos do artista
Ganha vivacidade por um momento
Para morrer no momento seguinte.

As lembranças insignificantes

Numa casa velha abandonada
Vivem minhas lembranças
Que se pudesse esquecê-las
E por mais que tentasse assim fazer
Nada aconteceria
Como pudesse mudar
O que já fora escrito
Por mim mesmo.
Como podemos jogar fora
Os encontros realizados
Os desencontros mal colocados
Em minha insignificante
Existência.
O que sobraria
Se nem lembranças pudesse haver
Mais
Numa caixinha de música
A tocar solenemente uma valsa
E uma bailarina dançar
A morte do cisne.

A reação química

Nem tudo o que o espírito reflete
O corpo sente
Pois o corpo possui sua própria linguagem
E se comunica com outro corpo
E sente o calor deste
Quando o que mais importa
É sanar a necessidade
Daquele corpo carente
Do atrito inquietante dos pelos eriçados
Do choque elétrico
Da reação química
Que explode como as bombas
De uma noite de são joão.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Os pecadores vão ao inferno

Os santos vão para o céu
Porque durante a vida
Nada fizeram de mal
E viveram completamente
Envoltos na própria ignorância
Sem provar o doce
Sem provar o salgado
Nem souberam o que era azul
Nunca olharam para o abismo profundo
Nem amaram suficientemente.

Mas outros
De pouca moderação vivida
Viveram intensamente os sentimentos
Mais profundos
Desceram ao abismo e queimaram no inferno
Sofreram horrores
Amaram intensamente as mulheres
De todas as procedências.

Não poderão jamais viver no céu
Devido sua monotonia insuportável
Para os de espírito irascível.
Rebelde a tal ponto que não suportariam
Toda ordem estabelecida
Nem a higiene dos anjos de branco
Cheirando ainda o perfume das lavanderias
De segunda mão.

Em silêncio

Por falar em amor
Melhor seria nada falaria
Que pudesse ser
Contravenção
Por si só
O silêncio
Sem explicação
Assim falaria
Sem fala alguma
Pela eternidade.

Vida não mais vivida

Que mistério te envolve
Que procura ocultar seu coração
Seja por precaução
Seja por medo de si própria
Uma modéstia sem razão alguma
Simplesmente para sobreviver
Às tempestades repentinas
Capazes de destruir os alicerces
Tão bem fincadas duma segurança
Contrária às aventuras libertinas
Do artista que procura todas as emoções
Para inventar a vida.

Não a sua
Sua vida não é inventada
Sua vida é uma trilha formada
Pelas condições das adversidades
Dadas pelo outro.

A tua é a vida
Do outro.
Por isso não pode viver
Sua própria vida.

A liberdade do poeta

Todos os poetas, porém, julgam que aquele que está deitado na erva ou numa encosta solitária, com o ouvido à escuta, aprende algo do que se passa entre o céu e a terra. E se experimentam ternas comoções, os poetas supõem sempre que a própria natureza está apaixonada por eles.
E que se lhe acerca o ouvido a murmurar coisas secretas e palavras carinhosas. Disso se gabam e se gloriam, perante todos os mortais. Existem tantas coisas entre o céu e a terra que só ao poetas sonharam.
E mormente no céu: porque todos os deuses, são símbolos e artifícios de poeta.

NIETZSCHE. Friedrich, Assim falou Zaratrusta, São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p. 106.

Luz e mistério

Composição: Beto Guedes / Caetano Veloso

Oh! Meu grande bem
Pudesse eu ver a estrada
Pudesse eu ter
A rota certa que levasse até
Dentro de ti

Oh! meu grande bem
Só vejo pistas falsas
É sempre assim
Cada picada aberta me tem mais
Fechado em mim

És um luar
Ao mesmo tempo luz e mistério
Como encontrar
A chave desse teu riso sério

Doçura de luz
Amargo e sombra escura
Procuro em vão
Banhar-me em ti
E poder decifrar teu coração

És um luar
Ao mesmo tempo luz e mistério
Como encontrar
A chave desse teu riso sério

Oh grande mistério, meu bem, doce luz
Abrir as portas desse império teu
E ser feliz

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Uma canção triste

Numa velha canção
Do cancioneiro japonês
Que ouvi criança
Dizia:
“A felicidade existe
Apenas acima das nuvens”.

Nada sabia daquilo
Apenas ouvia:
“A felicidade existe
Apenas acima das nuvens”.

Muito tempo depois
Ouvia com nostalgia:
“A felicidade existe
Apenas acima das nuvens”.

Ainda não entendo
Estas palavras
Mas
Em minha súbita melancolia
Apenas ouço bater
Em meu ouvido esquerdo
Esta canção de infância:
“A felicidade existe
Apenas acima das nuvens”.

Nos tempos do pica-pau

Minha musa de infância
Daquelas que anunciavam
Os desenhos do pica-pau
Apareceu num jornal de recordações.
Fiquei entusiasmado
Fiquei feliz
Para vê-la novamente.

Era outra pessoa
Totalmente diferente da outra
Nada lembrava aquela
Que usava mini-saia
Exibindo suas pernas grossas
Mas agora era
Uma velha senhora
De cabelos grisalhos
De pele enrugada
Que cuidava dos netos.
Fiquei assustado
Fiquei arrepiado
Não era ela.

O tempo passara
Maltratando a saúde
E pouco a pouco deteriorando
A pele aveludada
De pelos eriçados
De cor de trigo maduro.

O tempo tinha passado
A musa tinha passado
Eu também tinha passado
Menos a memória
Na qual ainda vivia
A jovem menina
Anunciando a próxima atração.

Vem pica-pau
Vem....

domingo, 3 de outubro de 2010

Morrer no silêncio

Nenhuma palavra a mais
Para ser dito
Maldito seria se
Uma palavra que seja
Fosse dito
Nesta hora inoportuna
Um sussurro que fosse
Levantaria poeira
Turvando toda a transparência
De seus olhos atlânticos
Em que naveguei pela primeira vez
E sofri a maresia
E por pouco não fui devorado
Pelas bruxas de Circe.

Não diga nada
As águas se tornam calmas
E até perigosas.

Não diga nada
As crianças que dormem à noite
Não devem ser importunadas.

Não diga nada...

Amar para morrer

Amar e desaparecer: são coisas que andam a par há eternidades. Querer amar é também estar pronto a morrer. Assim vos falo eu, covardes.

NIEZSCH. Friedrich, Assim falou Zaratrusta, São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p.102.

Salvando os monstros...

É preciso igualmente que esqueça a sua vontade de herói; deve ser para mim um homem elevado, e não só sublime; até o éter deveria elevar esse homem sem vontade. Venceu monstros, adivinhou enigmas; mas precisava também salvar os seus monstros e os seus enigmas; precisava transformá-los em filhos divinos.
O seu conhecimento ainda não aprendeu a sorrir e a não ter inveja, a onda da sua paixão ainda se não acalmou na beleza.
Não é certamente na sociedade que se deve calar e submergir o seu desejo, mas na beleza.

NIETZSCHE. Friedrich. Assim falou Zaratrusta, São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p.98,99.

Contradição da vida

A vida do homem é uma tentativa aleatória. Ela só é um fenômeno monstruoso. Por causa de seus números e de sua exuberância. É tão fugitiva, tão imperfeita, que a existência de seres e seu desenvolvimento parece um prodígio.

JUNG. Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões, RJ: Editora Nova Fronteira, 2006, p.24

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Algo à espreita

Sem grandes alegrias
Caminha sorridente
O caminhante
Sem saber o que pode
Encontrar na próxima
Esquina de curva fechada.
Pode encontrar a morte
Nos lábios da mulher de branco
A qualquer momento.

Uma morte anunciada!
Nem temida
Nem buscada
Acontecida apenas.

Lançando dados

Enquanto perder nos jogos da vida
For motivo de sofrimento
Sofremos por algum momento
Depois nada disso
Terá importância
Suficiente para mudar
Seja nosso bom humor
Seja nosso mau humor.

Perder pode ser
Apenas uma circunstância
De uma vida
Que pode ser tudo.

Morrer de significação

Os poderosos mostram
Os dentes afiados e amedrontam
Aqueles que apenas se submetem
Sem desobediência alguma
E vivem sempre abaixando a cabeça
Pois precisam viver.

Os que não precisam viver
Estes vivem do perigo
E podem morrer
Por isso
Apenas por isso
Vivem intensamente
O momento vivido.

Os marinheiros vivem do mar
Como fossem morrer
Na próxima onda.

Os amantes vivem de seus amores
Como fossem morrer
No próximo encontro.

Mas aqueles que querem viver
Vivem com medo de morrer
Esquecendo-se que a vida é agora!

Quando será

Quando será que eu vou me libertar destes grilhões da esperança
Desse fim de filme, desse final certo e correto?
Quando será que me liberto das amarras de querer chegar à algum lugar
Pois ando, ando e ando e mesmo sabendo que não há lugar para chegar
Continuo a procurar um uma forma, um final ou um lugar

Quando será que deixarei de perguntar quando
A procura de respostas que respondam o que a ilusão de esperança quer ouvir?
Querer conhecer pra poder querer chegar
O cúmulo da ganância é querer querer para querer
E assim se perpetuar, talvez até sem querer

Quando vou deixar de me agoniar
Pra poder parar de andar
Poder parar de perguntar e questionar
E para de esperar
Uma paisagem que já está aqui
E que na verdade só me resta
Olhar

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Fugindo de nossos sonhos

Os musgos que encontrei
Pelo caminho
Meus pés se recusaram
A esmagar.
Mas se pudessem esmagar
Pesadelos de outros tempos
Ficaria sem histórias
Para contar.
Os pesadelos também são vividos
Como fossem verdade.

O nome é forma

O nome é a forma
De um conteúdo volátil
Que rápido se desfaz
Para poder se informar
Em uma mente
Sã, consciente

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma vida monótona

Os perigos evitamos
Se realmente queremos.

Mas o que será da vida
Sem eles.
Será que a vida pode
Ser vivida
Sem eles?
Numa eterna repetição...

Uma taça de veneno

Veneno algum é capaz
De fazer efeito para um coração endurecido
Que teme sofrer por um amor sincero
Desses que nada pedem em troca
Senão um olhar desarmado
Totalmente dado
Em todos os momentos da vida.

Nenhum veneno se compara
Com aquele que mata
Fulminantemente sem deixar pistas
É o perigo que ronda
É o perigo do amor sincero.

Cuidado amigo
Se quiser continuar vivo
Se afaste de qualquer possibilidade
De conhecer a morte que tem olhos de vidro.

Companheiro de caminho

Das horas somadas
Juntas, trabalhadas
Moldando pensamentos
Em argila imaginária

Assim se cria laços
Abraços e apertos de mão
Conduzidos por um caminho
Onde nada é em vão

O caminho nunca é sabido
Sempre percebido
E nunca esperado
Somente experimentado

É amizade comandada
Pela luz, pela fala pela estrada
Caminhada e testada
Desde inicio a início

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Gentil companhia

Pelos caminhos desta vida
Cruzei infinitas vezes
Com a morte anunciando
Nem feia era ela
Nem bonita
Apenas gentil e convidativa
Muitas vezes a segui sozinho
Outras vezes junto
E por diversas vezes morri
Para nascer de novo
Todas as vezes que abandonei a mim
Todas as vezes que me senti abandonado
Era nesses instantes que ela aparecia
Para não me sentir tão solitário.

Silêncio da tarde

Sem nada falar
As palavras são ditas
Em toda sua verdade
Pois não economiza
No silêncio transparente
O movimento dos olhos
Que se cruzam por instantes
Como nada mais precisasse
Ser colocado em letra aberta.

E como o tempo demora
Para passar
Num eterno movimento
Quase parado no espaço
Infinito de nossa existência.

Só os olhos bastam
Revelando sua mais funda
Areia cristalina
Que nunca se turva.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Primavera!

Alguma mudança acontece
Quando a primavera renasce
Por detrás dos muros caiados
Uma alegria sem nenhum sentido
Parece marcar a face antes crispada.
Se antes negava ternura
Ternura já terá.
Pois até a mais dura
Vaidade não terá validade
Em tempos que as cores
Todas elas
Amarelas e vermelhas
Mancharão de repente
O chão de toda gente.

domingo, 26 de setembro de 2010

Uma vida num jogo de cartas

Aquelas mulheres de saia rodada
Rodavam suas saias na porta da igreja
Oferecendo seus serviços para os
Necessitados de uma ajuda mágica.

Não apenas uma reza rápida para o santo
De fé de preferência.
As cartas das ciganas podiam revelar
Segredos ainda não revelados.

Nenhum destino poderia estar presente
Numa simples previsão da mulher do tempo
Pois sempre chove à tarde
Ainda que não devesse chover.

Se pudéssemos planejar nossas vidas
Que haveria de diferente
Abaixo do céu senão total indiferença.
E todos os sonhos não passariam
De sonhos já prontos.

Como bolhas de sabão

Se assumirmos nossa própria
Condição de bolhas de sabão
Que sopradas vão sempre subindo
Descendo também sem se importar
Refletindo o mundo inteiro
Seja azul seja negro seja vermelho
Até que venham as farpas da rosa
Fazendo explodir em pedaços de água
Cristalina mil partículas gasosas
Que me importa sua existência efêmera
Tão breve que nem deixa rastros
Pelo caminho onde passa.

Como bolhas de sabão
Vivemos os perigos da vida
Vivendo intensamente
E morrendo em cada esquina
Nos braços de uma mulher.

Ao tomarmos ciência
De que bolhas de sabão não são
Eternas
Eternas serão os momentos
Fugazes como gazes
Evaporando a cada instante.
As pessoas continuam sendo o que são mesmo se sua face desmorona
Bertolt Brecht


.

sábado, 25 de setembro de 2010

Poesia para não morrer de tédio

Para quê compor tantos
Poemas?
Se a vida continua a mesma
Sem que o sofrimento diminua
Sem que o desencontro diminua
Sem que os amores possam
Novamente acontecer.

Talvez por isso
Talvez justamente por isso
Por isso que continuamos
Compondo poemas.
Não para mudar as coisas
Mas para não enlouquecer
Do excesso de realidade
Dura e cinzenta
Como as nossas cidades.

Como valesse a pena

Nunca aprendi a comer com palitos
Que ainda incomodam nos dedos
Nunca aprendi a tabuada direito
Que ainda erra em meus cálculos
Nunca li a Divina Comédia inteiro
Por isso nada sei da vida
Da vida de Virgílio e Dante
Da minha? Nada muito interessante
Nada fiz do que valesse a pena
Senão três pontos no joelho
De um lombo que levei criança
E bati a cabeça e o coração
Foi aí que começou meu dilema
Perdi a razão de existir.

Perdi novamente outras vezes
Mas por uma teimosia insana
Continuo acreditando nas ondinas
Que poderão vir no próximo verão.

As cartas que escrevi

As cartas escritas jamais foram
Enviadas para um destino qualquer
Pois não havia um destinatário
Nenhum endereço
Que pudesse recebê-las.

Foram escritas para uma mulher
Que aparecia numa folhinha antiga
Que não se sabia quem era.
Nem se realmente existia.

Mas as cartas continuaram
Sendo escritas...

Sem rumo na vida

Quanto maior a certeza de que
Não estamos vivendo um sonho
Mais caímos num buraco fundo
De total incerteza.

Se de fato a incerteza é palavra
Corrente navegando ao sabor do vento
Minha vida sopra de um canto para outro
Sem que alguém possa colocar em seu rumo
Sou vela desgovernada
Errando pelas águas desconhecidas
De uma mente enlouquecida
Pelas cores exageradas do arco-íris
Numa manhã de primavera.

Até o sorriso singelo da dama
Que carrega um alaúde laqueado
Que geme uma cantoria do passado
Não passa de um sonho
Que continua se repetindo...

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A vela

Ai, teus olhos negros!
Prometem prazeres,
Delícias, orgias...
Calafrios quentes em noites frias
Inculcam desejos loucos
Suspiros roucos
Ai, teus olhos negros!
Mexe em minha alma
Não!-revira com lança fria
Carrego os dardos de seus olhos,
Latejando, morena, ardidos
Carrego por todo o dia!
Quero seus olhos de bicho,
Quero os prazeres que me prometia!
Guardar paixão assim escondida,
É perigoso, como vela acesa em casa,
Que se esquecia...
Pode-se esquecer de fato,
Mas o incêndio retorna,
Calamitoso, exclamação que não se prenuncia!

A insânia

Uivam os cães, os lobos, os homens!
Uivem, oras!
Seus uivos, minhas gargalhadas
Que sinfonia aterradora!
A vida não é vida
Sem o tempero suave
Sutil
Frio e jamais vazio
O tempero da insânia!
Ocultar qual arma branca envenenada,
Qual adaga, faca, ou mesmo risada,
A pitada apimentada da insânia!
Ah, que são os comentários,
As análises,
Os postulados,
Os doutorados e doutrinas
AS DOUTRINAS, MEU DEUS!!
A sabedoria verdadeira é polvilhada de insânia,
Um leve sarcasmo,
Divertido e inócuo...
O diabo mental,
Desgrenhado, bem humorado e sagaz,
Apontando o dedo sujo e rindo desdentado... Maldito!!!
Se não contra as massas,
Contra a elite,
Sábios e ignorantes,
Pelo menos contra si mesma,
Coroada por uma autêntica gargalhada!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"Linda de morrer"

A poesia está morta
tira da cova outra artimanha
esta se alimenta da luz do caminho
e morre na ponta dos dedos

Ao contemplar a poesia
surge inevitável a mortualha, mas
se ainda há medo na noite escura, vai
colhe flores brancas antes de fechares os olhos

.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Alguns não passarão

Sempre os medíocres
Sempre os medíocres
Serão os vencedores!
Por isso a vida se tornou
Insuportável
Assim a vida passará
A boiada passará
Os cães passarão
Menos os perdedores
Que nunca estarão de acordo
Acordados num contrato social
Assinados abaixo
A própria condenação.
Perder para não perder
A dignidade de ser livre.

Tempo sem coragem

Outrora amor havia
Havia coragem nos corações
Dos homens
Ternura havia nos corações
Das mulheres
Mas quando a ternura deixa
De existir
O mundo se torna
Inabitável
E a vida totalmente
Sem sentido algum
Só existirá o medo
De enfrentar seus próprios
Demônios voando em vassouras
Outras como ninfas devorando
Marinheiros sedentos de amor.

Mas o tempo dos heróis
Ficou na saudade
Os covardes venceram
E regozijam-se com os corvos
Que não se incomodam com os vivos
Só com os mortos.
Só estes.

Pelos cães de Menelau

Começamos a ceder
Diante da insistência dos deuses
E passamos a ser menos homens
Pelo medo da vingança
Que possa nos recair
E submetidos à ordem superior
Admitimos que somos
Da ordem inferior
Que temerosos não vivemos
Totalmente livres
Nem queremos esta liberdade
Pois necessitamos
Insistentemente
De alguém que possa nos punir
E assim ficamos felizes
Súditos apenas da absurda
Condição humana.

Quando as palavras enganam

Que palavra pode ser mais
Verdadeira do que aquela que
Silencia nas bocas pálidas
Pois tudo aquilo que se diz
Pode ser mentira.
Qualquer afirmação pode ser
Negação de alguma coisa.
E ainda que possamos
Usar de toda sinceridade
Não será suficiente
Para dizer a verdade
Que prefere esconder-se
Ou ainda não ser dito.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sim

Ninguém segurou minhas pernas
quando a vontade me atravessou
e no outro lado da rua pedi
um copo de água ardente

Naquele lance do passado
minha voz nem sempre era
grave assim como hoje, mas aquilo eu
não sabia, eu aceitava

Sempre disseram sim
por trás do balcão fosco
tão solícitos, tão rudes
tão amigos, tão ingênuos

Sim. Sim sempre
Sempre há sim num balcão de bar
(Põe a mão e o copo bate o fundo,
o álcool estala doce até a tona)

Isto é assim de não segurar
o corpo vai que vai só - as lembranças
sem razão nem explicação, dócil
o corpo segue, difusa herança é a cabeça

Trago agora o copo para que me esqueça
e sinto só - o que morreu
Escondo a cara nua sobre a mesa
crente e cego de um segredo só meu

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A lua e o poeta

Assim que a noite vem depressa
Passamos a enxergar melhor
Pelas poças de lama refletida
A lua em toda a sua dimensão
E como bela ela aparece
E desaparece num balão de gás
Por detrás das nuvens em cortina
Não revelando sua face.

Mas quando a noite não vem
Então que a noite venha
Ao cessar a luz nos olhos batidos
E possamos mergulhar fundo
E encontrar novamente
A alegria de estar acompanhado
Seja pela lua
Que ainda não apareceu
Dócil e entregando-se inteira.

Ouvidos cansados

De repente passei a não entender mais nada!
Todos aqueles sons e todas aquelas palavras
Vinham e simplesmente entravam sem bater
Meus ouvidos finalmente puderam descansar
Deste trabalho incessante de entender as coisas

Meus ouvidos sempre quiseram entender tudo
Mesmo quando nada era para ser entendido
Ele insistia em entender

Mas agora ele não entende mais nada
Melhor assim
Meus ouvidos deixam de entender
Para que Eu passe a entender as coisas

domingo, 19 de setembro de 2010

Que frio que sinto

Um pássaro estranho
Insiste em cantar
Um canto afinado e belo
Anunciando alguma coisa
Pelas manhãs de inverno.

Tempo em que todas as folhas
Despencam dos galhos e os galhos
Ficaram totalmente nus
E soprados pelo vento
Torcendo seus troncos
Tal qual um corcunda.

O inverno é um velho
Que caminha desconsolado
Pelas ruas solitárias
De minha cidade
Cidade que existe
Nos neurônios explodindo
De minha mente.
Todo frio que sinto
É na minha mente que sinto.
Sinto tanto a falta de uma
Mão quente que acalanta
E embriaga a pele ressecada
De tanta febre em vão.

Areia e desolação

Para quem uma vez
Num barco esteve
Não alcançou outro lado
Do outro lado do Estige
Não encontrou os amigos
Que se foram
Os amores que não se realizaram
Pois era em tempo errado
E somente em tempos errados
O amor acontece.
Se fosse fácil de acontecer
Nenhum amor aconteceria
E nada teria validade.
E por amor a pedra é encontrada
Dessas raras pepitas perdidas
No veio da terra cristalina
Por ser raro o amor se revela
Em toda a sua dificuldade
E quando se pensa que a tem
Temos apenas a ilusão de alguma
Posse
Passageira como areia que derrama
Numa velha ampulheta.
Areia que continua caindo
Não se detendo jamais
Para que as horas passem
Sem que ninguém possa detê-las.

Batida do pandeiro

Numa rua desta cidade
Que ao entardecer
Cada vez mais frio se fazia
Nas calçadas havia
Um homem velho que tocava
Uma triste melodia
Em seu pandeiro surrado
Cantava um lamento qualquer.

Aquele lamento era
Também o lamento meu
Que por longo tempo
Ecoou nas paredes do ouvido
E vibrou uma tristeza infinita.

Era uma tarde de inverno!

sábado, 18 de setembro de 2010

Abismo de nossas vidas

Para onde arrastará
Seu pesado carrinho
Carregado de papelão
Subindo ladeira acima
Sem saída alguma.

Para que falar do catador
De papel
Se também carrego
Não apenas papel
Outros trecos mais pesados
Que pesa no corpo
Muito mais na alma.

Ao final da rua
Uma cancela quebrada
De outro lado o abismo
Fundo isento de salvação
Mas livre de todo medo
Pois nada mais há
Para se perder.

As flores secas

Para que servem as flores
Se não há ninguém
Para recebê-las.
Servem para enfeitar
As prateleiras empoeiradas
Dos livros que já li.
Ficarão por lá até que
As múmias surjam e façam
Companhia.
Dessas que podem saltar
Das páginas amareladas
Dos cantos ainda molhados
De restos de saliva.
Por fim aparecerão também
As bactérias que devorarão
Totalmente
Do pedaço daquela flor
Que por fim secou
Sem serventia alguma
Ficou apenas a intenção
De um dia ser dirigida
A alguém
Que nunca existiu
Melhor que fosse assim
Assim debaixo dos olhos
Como poeira
Caiu.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Desolación

La bruma espesa, eterna, para que olvide dónde
me ha arrojado la mar en su ola cae salmuera.
La tierra a la que vine no tiene primavera:
tiene su noche larga que cual madre me esconde.
El viento hace a mi casa su ronda de sollozos
y de alarido, y quiebra, como un cristal, mi grito.
Y en la llanura blanca, de horizonte infinito,
miro morir inmensos ocasos dolorosos.
¿A quién podrá llamar la que hasta aquí ha venido
si más lejos que ella sólo fueron los muertos?
¡Tan sólo ellos contemplan un mar callado y yerto
crecer entre sus brazos y los brazos queridos!
Los barcos cuyas velas blanquean en el puerto
vienen de tierras donde no están los que son míos;
sus hombres de ojos claros no conocen mis ríos
y traen frutos pálidos, sin la luz de mis huertos.
Y la interrogación que sube a mi garganta
al mirarlos pasar, me desciende, vencida:
hablan extrañas lenguas y no la conmovida
lengua que en tierras de oro mi vieja madre canta.
Miro bajar la nieve como el polvo en la huesa;
miro crecer la niebla como el agonizante,
y por no enloquecer no cuento los instantes,
porque la noche larga ahora tan sólo empieza.
Miro el llano extasiado y recojo su duelo,
que vine para ver los paisajes mortales.
La nieve es el semblante que asoma a mis cristales;
¡siempre será su albura bajando de los cielos!
Siempre ella, silenciosa, como la gran mirada
de Dios sobre mí; siempre su azahar sobre mi casa;
siempre, como el destino que ni mengua ni pasa,
descenderá a cubrirme, terrible y extasiado.

Gabriela Mistral (1889-1957) Prêmio Nobel em Literatura de 1951

Última Esperança

Antes caçados, os guanacos quase foram totalmente exterminados. Em parques nacionais, protegidos, podem ser vistos livremente. Estes são encontrados na Ruta caminera Puerto Natales a Parque Nacional Torres del Paine, na região conhecida como Ultima Esperanza.
(foto: Jisho Handa)

Pássaros pretos


Ao final do inverno, ainda o branco da neve espalha-se pelas montanhas da Patagônia, em especial Puerto Natales, Chile. Os pássaros pretos são silhuetas na imagem totalmente branca.
(foto: Jisho Handa)

Pedido cumprido

Assim a mulher que queria
Um namorado pedia
Pode ser alguém que seja
Pode ser qualquer um
Pode ser aleijado
Caolho e vagabundo
Pode ser do outro mundo
Gordo e também imundo
Desde que seja meu.

Ela teve o que mereceu!
Era tudo aquilo
E outros adjetivos!

Tudo se perdeu na linha do trem

Uma imagem de Kanzen
Toda de porcelana negra
Toda compaixão presente
Todo amor que poderia dar.

Um trem atravessa atravancando
Numa linha férrea ao lado
Faz despencar em pedaços
Aquilo que antes era belo
Em põe em pedaços
Toda compaixão presente
Todo amor que poderia dar.

Tudo se perdeu em instantes
Todo amor que eu tinha se foi
Reduzido a cacos
Sem tristeza alguma
Sem alegria
Nem restou a lembrança
Que também se perdeu
Na linha do trem.

Latinidades

Divinum dare
Humanum accípere

Chanson d’Outomne

Les sanglots longs
Des violons
De l’outomne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
E blême, quand
Sonne l”heure
Je me souviens
De jours anciens
Et je pleure
Et je m’em vais
Au vent mauvais
Qui m’importe
Deçá, delá
Pareil à la
Feuille morte.

Paul Verlaine

Canção de outono

Os soluços graves
Dos violões suaves
Do outono
Ferem a minha alma
Num langor de calma
E sono.

Sufocado, em ânsia
Ai! Quando à distância
Soa a hora
Meu peito magoado
Relembra o passado
E chora.
Daqui , dali pelo
Vento em atropelo
Seguido
Vou de porta em porta
Como folha morta
Batido.

Paul Verlaine

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Não gostei...

Um único grão de arroz
Que caísse do prato
Lá vinha em ladainha
Cate e coloque de novo
Dentro do prato
Assim me lembro
Da primeira vez que saí
De casa
Na casa de minha avó fiquei
Não sei se gostei
Não sei se não gostei.

O gosto metálico do garfo
Desagradável.
Acho que realmente
Não gostei.

Queria comer com a mão
E lamber os dedos
Todos os dedos
De menino de cinco anos.

Quando a realidade se torna fantasma

Que saudades sentirei
Do inverno passado
Que me faltou cobertor
Que pudesse aquecer meus pés
Nas noites de sábado.
As meias de tanto usar
Ficaram rasgadas de lado
Ainda assim não reagi
E ficaram assim mesmo
Abandonadas.
Abandonei o verbo
E toda vontade de viver
Assim sobrevivi às tempestades
Que furavam telhados de zinco
Tamborilando um festival
Do boi da cara preta
Que não mais assustava.
O que assustava era
O excesso de realidade
Totalmente irreal como
Um fantasma
Fluido e transparente.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Guerreiros dos sonhos

Por todo lado se via
Cruzes plantadas no solo
Num antigo campo de batalha
No qual dormiam eternamente
Guerreiros ainda envergando
Armaduras de couro curtido.

Cruzando o céu uma andorinha
Velava o sono daqueles que
Em seus sonhos ainda lutavam
E podia sentir os cascos dos cavalos
Levantando poeira e cascalhos.

Quando fico só
Sãos estes que andam do meu lado.

Aquilo que contamos

Mentimos para todos
De que somos sérios
Menos para nós mesmos
Cuja maior seriedade
Seria deixar a seriedade de lado
E posamos como santos
Quando na verdade
Nada temos de santos
Nem de santificado
Paremos de mentir
Quando possamos assim
Assumir sobretudo
Nossas fraquezas
De amar casos perdidos
Sem se arrepender.
Os que se arrependem
Jamais amaram de fato.

Quando o inverno se for

Nunca o inverno foi tão
Rigoroso nos trigais para fazer pão
Em que nenhum calor
Foi sentido na pele macerada
E as bocas se calaram
Num silêncio que não passou
De profundo desencantamento.
E continuaram caladas
Bocas
E sentimentos
Congeladas talvez pelo
Gelo nos corações.
- Inclusive no meu.
Mas quando o inverno se for
Então da terra coberta surgirão
As armas do passado
Os fantasmas do passado
Para nos assombrar
Uma história que não pode
Ser esquecida.

Demoniozinho criador

João era amaldiçoado
Ele tinha o dom de criar
Era aterrorizante
Ele criava e logo em seguida,
As coisas surgiam na sua frente!
Ele criava e as coisas existiam por conta própria
A cria e o criador se separavam no momento da criação

Todas elas ganhavam asas
Voavam pra lá e pra cá
Ou então ganhavam pernas
E caminhavam pra lá e pra cá

Tinha umas que ganhavam coisas que ainda não tinham nome
E também coisavam pra lá e pra cá
Sem dependerem de João
Elas sempre iam e vinham

João percebeu
Que ter o dom de criar é uma maldição
Mas que ele sempre seria
Um demoniozinho criador
E nunca um santo destruidor

A orquestra se quebra

(Veja o anterior)

Foi então que a orquestra parou
Esquartejada pela sirene da insegurança
Naquele instante tudo voltou a aparecer e desaparecer
Eu
Tu
Ele
Nós
Vós
Eles

Orquestra do silêncio

O ensurdecedor silêncio das duas da manhã,
Mostrou um planeta parado, só pra mim
Resultado da insana cafeína de um longo dia
Trouxe toda beleza desta Terra
Apenas por uma janela
O mundo ali
Era de uma impossível natureza estática,
Na que meus pobres sentidos queriam acreditar
Que infinitamente tocou com a orquestra do silêncio,
Regida pelo relógio sem ponteiros,
E assistida por um ser,
Que ali, jamais estivera

domingo, 12 de setembro de 2010

Ao ribombar do sino

Um velho segue adiante
Blém... blém...

Um jovem segue adiante
Blém...blém...

Uma criança nasceu
Blém...blém...

Um novo amor surgiu
Blém...blém...

Um velho amor acabou
Blém...blém...

Por fim o padre se cansou
... ...

Apenas profundo

Nada pode ser mais confortador
Do que o silêncio
E podemos até sorrir
De uma alegria sem explicação
Nada dizer
Pois os olhos dizem muito
E se despedir
Sem palavra alguma.

O bumbo do padre

Naquela cidade pequenina
Cruzava as ruas do centro
O padre e um batedor de bumbo
Arrastando em fileiras
Crianças de todas as idades
Com as suas melhores vestes
Não havia uma só criança
Que deixasse de seguir
O padre e o batedor de bumbo
Todos iam menos eu
Desconfiado
Das verdadeiras intenções
Daquele padre
Que queria público
Para a missa das oito
Que distribuía figurinhas
De santos.

Aquele padre se parecia
Muito com o flautista das fábulas
Arrastando para as águas
Uma porção de ratos
Não queria morrer afogado
Nas águas batismais
E acabar com todo
O pecado do mundo.
Se isso acontecesse
Que seria do mundo
De pecadores como eu?

Devaneios de uma noite

Havia um tempo
Que todo o meu mundo
Se resumia
A um bolso da calça
Rancheira
Um osso de galinha
Uma borracha de atiradeira
Uma bolinha de gude
Uma figurinha
E não sabia como era
Rica minha vida.

Nada mais disso tenho
Senão a esperança
De continuar
Sonhando.

Posso perder tudo
Menos o sonho.
Minha vida toda
Não passou de um
Sonho!

Dois mendigos

Pelo caminho havia
Dois mendigos que pediam
Um pouco de caridade
- Uma moeda pelo amor de deus

Naquele caminho havia
Lixo esparramado pelo chão
Então pedi:
- Recolha o lixo do chão e
Merecerá não apenas uma
Duas moedas inteiras.

Pelo caminho havia
Dois mendigos que pediam
Um pouco de caridade.
Nada mais queriam do que
Uma moeda
Não duas
Apenas uma
Por caridade
Sem sujar a mão no lixo
Espalhado pelo chão.
Pelo amor de deus
Nada fizeram
E dispensaram
Duas moedas.

E continuaram pedindo
Para um outro
Que por lá passava.

Repartindo a dor

Nada mais tenho que
Meu manto puído e negro
Que abriga todo o meu corpo
E o universo todo também.
Todos aqueles que sofrem
Nele encontra abrigo
Com eles reparto
O calor que ainda
Aquece meu coração
Que o sofrimento de todos
Seja também o sofrimento
Meu.
Somente os que sentiram
Em seu peito
Fagulhas do sofrimento
Sentem o sofrimento do outro.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O lado escuro da estrada

Como uma noite escura
Escura também é a minha face
Desaparecendo ao final da estrada
Que conduz às beiras de um abismo
Em que os homens de coração puro
Atiram-se com asas de pássaro.

Os apaixonados são puros
Porque têm tudo a perder
Ainda assim insistem
Em suas empresas.
Perder é ganhar o mundo
Em seu total significado.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Solidão amiga

Uma solidão consentida
Dessas que se tornam verdadeira
Amiga em momentos de desconsolo
Não que ela console alguém
Mas com ela podemos mergulhar
Juntos num mar profundo
Sem medo algum
Sem medo da verdade
Que pode desagradar
Aqueles que sentem vergonha
Dos próprios sentimentos.

A solidão pode ser
Amiga
Principalmente quando
Nenhuma amiga
Pode ser melhor do que ela.

A solidão é irmã da noite
E ninguém da noite entende
Melhor do que eu.
Durmo com a noite
Para que a solidão de todo deserto
Seja a eternidade além do tempo
Passado e presente.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Perdendo a vida

Nem que seja para perder
Nem me importa se perder
Tenha alguma importância
Importante mesmo é viver
De maneira totalmente livre
Rir quando rir se fizer necessário
Se for desnecessário
Continuar rindo
Das agruras passadas
Por ter enfraquecido
Este coração tolo
Diante da própria ilusão
De um amor endurecido
Por medo de se entregar
Inteiro.

Não se vive para ganhar
Nem perder
Apenas se vive
Alguns com coragem
Outros com medo
Os que têm coragem
Perdem a vida
Os que não têm
Não perdem jamais
O que nunca tiveram.

A vida é sempre
Compartilhada
Quando uma perde
Todas perdem juntos.

Com coração se vive

Que eu possa viver todas
As complicações dos encontros
Dos supostos desencontros
Com tamanha disposição
Que seja sobremaneira com coração.
E quem com coração age
Leva desvantagem
E quem com coração age
Tem coragem suficiente
Para ousar em cada momento
De sua vida breve e efêmera.

Os que agem sem coração
Falta de coragem para viver
Não amam também
Por medo e sem coragem
Tornam-se egoístas.
Não vivem
Não vivem por medo da vida.

domingo, 5 de setembro de 2010

Viagem

Rodas girando
Quilômetros passando
Pra onde, mesmo?





Sem caminhos

Desconhecendo que caminho
Tomar
Pois caminho algum existia
Senão aquele formado pelos passos
Dados
Passos largos que marcavam
A argila mole ainda
Ficou desesperado
Pois caminho algum existia
Ficou apavorado
Diante da inexistência dos caminhos
Dos outros que seguiam caminhos
Abertos por outros homem e mulheres
Que tinham passado
Caminho dos outros
Não o próprio caminho.
Sem caminho a seguir
Desacreditou nas próprias pernas
Pernas fracas e preguiçosas
Até ver adiante
A linha do trem
Por fim quis
Seguir adiante
A linha do trem
Pois levaria a algum lugar.

A sombra do meu lado

Ainda que vá para longe
Sempre estará ao meu lado
Sombra que jamais se livra
Daquele que a sombreia
Nem sei em que existência
Se sou a sombra
Se sou o outro
Que não conheço realmente.

Se realmente pudesse
Ser conhecido
Conhecimento algum
Haveria.
Por isso não posso me ir
Se fosse para o outro lado
Mas este outro lado não
Haveria
Nem a minha vontade saberia
Se vontade esta seria
Realmente minha
Não seria portanto
De minha sombra
Ou de minha sombra
Seria.

Tudo aquilo que não sou
Que penso que não sou
Pertence à sombra minha
Que tem tudo aquilo que não tenho
Inclusive inteligência
Que há muito deixei para trás
Sou um tolo
Que caminha livremente
Pelas veredas verdes
Vislumbrando o horizonte.

É de minha sombra todos os amores
Não realizados
No ar rarefeito da matéria bruta
Amor que se consolida na matéria cinzenta
E na obscuridade das regiões trevosas
De cuja treva se confunde pela eternidade.

sábado, 4 de setembro de 2010

Vingança do fogo

Todas as cartas de amor
Escritas no calor de uma vida errante
Nunca foram enviadas
Nunca foram atiradas
Na boca de um vulcão
Para que se tornasse lava
E por onde passasse
Deixasse atrás de si
Um caminho em fogo
Marcando a terra
Marcando a carne
De todo o furor
Que pudesse existir
Nas entranhas desconhecidas
Da existência humana
Humano é o vulcão
Desumano é a água
Que apaga todo o fogo
E frio fica como nenhum
Fogo jamais tivesse existido.
Mas o fogo ainda há de se
Vingar mais forte ainda.

Contra o Estado

Tudo pode ser tomado
Proibido e renegado
Para o bem social
Para o bem da instituição
Moral
Político
E econômico
Tudo menos a capacidade
De sonhar
De compor poesias
Tudo menos isso.

Se isso acontecesse
Nenhuma esperança
Mais restaria neste mundo
Congelado em normas
Criadas por um monstro
Metálico que nada entende
Do amor que ainda resta
Pouco
Muito pouco
No coração dos homens
Das mulheres.

Em algumas delas
Que quiseram viver seus amores
Intensos e loucos
Tudo aquilo que poderia ser
Contravenção
Dos bons costumes
E dos princípios elevados.
Mas tratamos afinal
Do mais baixo instinto humano
O instinto de amar
Por isso
Isso também
Deve ser eliminado
Em nome do estado totalitário
Que querem
Um homem
Uma mulher
Conforme os padrões
Elementares do igual
Sem nada criativo
Senão a de ser dócil animal
Que pode ser domado
Chicoteado num espetáculo
De um circo romano.

As palavras traiçoeiras

Somente no silêncio
Podemos falar de coisas importantes
Realmente importantes
Que não se falam jamais
Sem que possamos incorrer
Em erros e desentendimentos
Pois as palavras dizem coisas
Que não representam
Aquilo que poderia ser
Bem diferente daquilo que
Se pretendeu dizer
Por isso
Por tudo isso
As palavras sem som algum
Que não refletem luz alguma
Postas num quarto escuro
Dizem muito mais
E se os olhos se encontram
Num facho repentino de luz escura
Muito mais dizem
Num lapso momentâneo
Sem palavra alguma
Com todas as palavras do mundo
Silenciosamente sentida
Numa cumplicidade
Que nada mais precisa
Do que o instante
Que se faz presente
No momento exato em que
Nenhuma explicação
É necessária.
Só necessita do silêncio
Nada mais do que silêncio.

Nome

Bem-te-vi, desde que soube teu nome
nunca mais te-ou-vi


.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Soneto 17

No te amo como si fueras rosa de sal,
topacio o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.
Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.
Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera,
sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

Pablo Neruda - Chile - 1904-1973

LA CRUZ DE BISTOLFI

Cruz que ninguno mira y que todos sentimos,
la invisible y la cierta como una ancha montaña:
dormimos sobre ti y sobre ti vivimos;
tus dos brazos nos mecen y tu sombra nos baña.
El amor nos fingió un lecho, pero era sólo tu garfio vivo y tu leño desnudo.
Creímos que corríamos libres por las praderas
y nunca descendimos de tu apretado nudo.
De toda sangre humana fresco está tu madero,
y sobre ti yo aspiro las llagas de mi padre,
en el clavo de ensueño que lo llagó, me muero.
¡Mentira que hemos visto las noches y los días!
Estuvimos prendidos, como el hijo a la madre,
ti, del primer llanto a la última agonía!

Gabriela Mistral - Chile - 1889-1957 - Prêmio Nobel de Literatura de 1951

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Nostalgia

O olor secreto do mar
O corte vertical ⎯ o lugar
Recôncavo. Bissetriz
Onde seres-girinos sabem, pois
como eu, nunca aprenderam.
(uma nostalgia oceânica)

Seguem para a imensidão
obscura ⎯ o planeta fecundo
dos teus olhos transbordantes de sal
do teu ventre de leite e maresia, e de
umidade perdida no tempo

No templo do cume das
coxas, água de lábios é
oferecida no altar do desejo
e recebida em ondas de
superfície à superfície
sem início

No mais profundo leito
marinho de transparência,
dançamos entre estrelas e satélites
Um ser de oito tentáculos
imune à gravidade,
e ao amor.

Astronauta

Será que é preciso ser novo para sonhar?
Porque o menino passa suas tardes solitárias
Sonhando ser aquele super-herói de capa vermelha
Que derrota seu inimigo-estante gigante e maligno
E a menina, que vive na espera de seu príncipe encantado
Dono de um reino distante de flores de chocolate
E cachorros cor-de-rosa cintilante

As crianças crescem e conhecem a realidade
Ou será que a desconhecem?
Ou será que a reconhecem?
Os sonhos são deixados para trás quando se cresce
Desaparece a imagem poética do herói idealizado
E surge o ator americano drogado e preso por espancar a esposa
Desaparece a esperança do príncipe medieval e do reino mágico
Para surgir o namorado bombado e barzinhos badalados

O astronauta vira um operador de telemarketing
A nave interestelar, um Volkswagen usado pago em 60 vezes
A viagem à Lua dá lugar a horas de trânsito na Imigrantes
O grande império intergaláctico vira um cômodo-cozinha no Centro
E o tesouro imperial se resume a um Pentium III e uma geladeira Brastemp
(Laboriosamente pagos no carnê das Casas Bahia)

A vida morre a cada segundo
E os sonhos a acompanham em cada desilusão

Mas após juntar uma graninha, compra-se um PlayStation
E o operador de telemarketing pode ser um astronauta
Pode viajar à Lua e dominar o grande império intergaláctico
Pode conquistar a princesa mais linda do Universo
E se tornar o maior imperador de todos os tempos
À noite, em seu sonho, o grande imperador reúne todos os seus súditos
E começa seu longo e pomposo discurso:
"Bom dia! Hoje vou estar oferecendo aos senhores
Uma incrível promoção imperdível pela qual os senhores vão estar pagando
apenas uma quantia simbólica a ser debitada em seus cartões de crédito..."

Então, no vazio,

Não há sabedoria,
E não há ganhos:
Se nada existe
O que diabos há de se ganhar?

E ao ganhar nada
Nada então se há para perder
E nesse nada ter
É que se conquista
Absolutamente tudo
Que assim há de haver

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Les mots ne sont rien

Faire la poésie est très facile
très facile de manipuler les mots ⎯
De mots et de leurs descendants à se débarrasser
du grand art

(em parceria com o Google Tradutor)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A força do instinto

Não resista à natureza
Selvagem de cada um
Quanto mais selvagem ela for
Maior será o instinto de sobrevivência
Dos instintos mais irracionais
Como a capacidade de amar
Sem medir conseqüência
Em total irresponsabilidade
Frente às leis criadas pelos homens.

Como o amor é imoral
Não faz parte deste mundo
Imenso mundo
Em que as aparências
De um vidro opaco
Tal qual fantasma
Vaga como não existisse.

Somente na mente
O amor existe!

Para outros sítios

Uma vontade imensa de ir
Para outras terras desconhecidas
Onde ninguém realmente
Me conheça
Que me reconheça
Assim posso conhecer
A mim mesmo
Por isso tenho que esfriar
Os ânimos
Também os desânimos
E poder respirar
Profundamente o vento
Gelado dos mares gelados
Onde o mundo se acaba
Num farol desolado
Onde nem a tristeza
Tem mais vez
Neste lugar poderia
Ficar
Onde sempre fiquei
E nunca saí realmente
E como é quente
O aconchego
Ainda que tudo seja
Apenas gelo.

Encontro com o amigo

Nem muito alegre
Nem muito triste
Apenas o mesmo de sempre
Amigo de outras datas
Que por algum motivo
Justificado ou não
Ou por motivo algum
Novamente cruzou comigo
Sonhador era ele
Sonhador era eu
De poucas palavras
E muita poesia
Por fim por alguma pergunta
Atravessada ele disse
Com um sorriso luminoso
- Não me incluo entre os vencedores
- Sou perdedor!
Senti uma profunda dor
Ele era mais sonhador do que eu.
Meu sonho era o verso mais tocante
O dele o verso que não rimava com
A vida.

João dormiu

(veja os dois anteriores)

João já tinha criado tudo
O gato, o rato e o cachorro
A dor e a alegria
A vida e a morte
Também tinha criado o sono

Mas não podia fazer mais nada
Tudo já estava criado
Tudo já estava lá

João não podia nem mesmo perguntar a si próprio
Pois a própria pergunta já estava lá
Já estava feita em algum lugar

João percebeu que tudo já estava lá
E que sempre esteve
E então foi dormir
Sem mesmo sua mãe mandar.

A pergunta do João

(veja o anterior)
Uma vez o João perguntou a si próprio:

“Por que perguntamos tanto à nós mesmos?
Talvez perguntar seja do ser humano, né?
Será que minhas gatas perguntam para elas mesmas?
Acho que estou perguntando novamente, não estou?
Mas será isso o normal?
Se não, qual é o normal?
Então porque eu nunca soube o que é o normal?
Existe um normal?
Existe algo não normal?
Será que estou sendo confuso?”

E assim ele também criou o questionamento.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

João criava castelos

Casa, prédios
Criava pessoas e animais
Pessoas animais
E animais em pessoa

João também criava
Plantas, árvores
E tudo aquilo que nascia
E que morria
Ele criou a vida
Para ser morta
Pela morte
Que teve que vida pelas mãos de João

João nos criou
Mas não criou eu nem você
Apenas a nós

João deu giro à Terra
Que gira o mar
E gira o ar

João criou a dor, que dói
Criou a areia
E o castelo na areia

Criou também
Aquilo tudo
Que ainda não tem nome

Mas tudo se foi
Na mesma intensidade com que foram criadas
Quando chegou sua mãe
E o mandou dormir!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Uma vida em vão

Sei
Não nasci no melhor dos dias
Nasci com pé esquerdo
Num dia em que bruxas
Andam soltas em suas vassouras
Cruzando o céu e amaldiçoando
As famílias bem constituídas
Dessas em que o figurino
É medida certa.

Sei
Nunca fui aplicado nos estudos
No trabalho fui vagabundo
Muito fraco nas letras
Também da cabeça.


Sei
Pecador fui no maior dos tempos
Não mereço nada melhor
Do que um caldeirão fervendo.
Das coisas que tinha perdi
Dos amores que tinha perdi
Perdi tudo numa mesa de jogo
No jogo da vida
Nada tenho mais
Mas mesmo assim
Uma única coisa
Que não podem tirar de mim
Meu direito ao sonho
Deste ninguém pode
Me tirar
Nem que me matem
Me esfolem
Me coloquem de ponta cabeça.

Cada vez mais velhos

Quando começamos a dar
Conselhos algo começou a mudar
Não apenas novas rugas no rosto
Nem maior inteligência
Mas uma crença de que os equívocos
Cometidos por nós mesmos
Os outros não precisam cometer
A vida não pode ser ensinada
Melhor ser vivida
Em toda a sua ilusão
Com o coração enorme
Que todo o amor possa ser
Preenchido nele
E depois esvaziado
Para nada mais sobrar
Nem a sombra do passado
Que não passa de um orvalho
A despencar e o mundo
Refletido nele
Desfazer em segundos.

Quando começamos a dar
Conselhos estamos mais velhos
Menos susceptíveis aos dilemas
Da vida
Nem por isso conformados
Ficamos verdadeiramente
Mais cínicos
Apenas cínicos.

Manhã no parque

Canteiro municipal -
o Sol acende
a clorofila das iridáceas -
Drosófilas minúsculas
se arriscam entre
rosários de orvalho
sonhados em teias -
Fios e raios iridescentes
costuram as folhas longas
e curvas num balanço -

Em cambalhotas quadradas (aos trancos)
Chega a folha do jornal de ontem
(lida pelos ventos e rajadas)
desfolhando o silêncio nas calçadas
...

Assim é olhar agora
mas é só/

.

domingo, 22 de agosto de 2010

Mentira que contamos

Passamos a maior parte
De nossa existência rapina
Contando mentiras
Sobretudo para nós mesmos
Como pudéssemos nos convencer
Da própria mentira que contamos
E fingimos que gostamos
Daquilo que não gostamos
E fingimos indiferença
Daquilo que amamos
Só por temor
Da verdade que arde
Em nossas entranhas
E depois fere as paredes finas
De nossas hemorróidas
E mentimos que nada temos
Por uma vaidade insana
Em demonstrar uma potência
Que não temos
Por medo do sofrimento
Mas a verdade é sempre sofrida
Nem totalmente bela ela é
Por isso a mentira agrada mais
Em mostrar uma aparência
Outra.

Força indomável

Mesmo quando não a queremos
Que é a maioria das vezes
Ela pode entrar
Sem percebermos
Assola nosso dia
Sem mais nem menos
Nosso semblante murcha
Vontades se não se deixa desfazer
É a de ficar só
Só, parado e coberto
Não há vontade de querer ver o mundo
Só a TV
Nada te anima
Ou tira de lá
É mais forte que a gente
O que fazer?
Sobre uma força que nós não dominamos
Que frustração para a raça humana
Não assumirmos o controle
De algo que não é da nossa vontade
Algo tão comum aos seres sapientes
Querer comandar
Mas que coisa!
Mas que gripe!

sábado, 21 de agosto de 2010

Coisas que não se esquecem

Em nenhum momento
O esquecimento realmente aconteceu
Se quisesse ainda esquecer
Como podemos esconder
Das marcas deixadas numa árvore
Tantas vezes o seu nome.
Como podemos esconder
Das marcas deixadas na alma
O sussurro ao vento.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

...




Reticências:
Síntese simples
Emoções complexas



Criança debaixo do Sol

A criança brincava
Até seu último pingo de energia
Até o último raio de Sol
Sem pensar em nada
Nem pensar em brincar
Até o fim do Sol chegar
E assim que a lua imperar
Ir para casa
Continuar a brincar
De que o Sol agora está lá
Nos seus sonhos de criança
Que não pensa em brincar
Não pensa em crescer
Nem pensa no brócolis
Que tem que comer
Coma garoto! Dizia sempre sua mãe
Corra que os invasores do espaço estão vindo!
Escutava o garoto
E até o último resquício de Sol
Pois jamais antes do Sol
Sua energia acabava
Brincava e brincava

Pipa que rodopia

Nunca consegui empinar pipas
Cuja linha lançada no espaço infinito
O menino ao céu subia
Tremeluzia num bailado
Que durava a tarde toda.

Nunca consegui empinar pipas
Mas a felicidade do menino que empinava
Tamanha era o seu coração
Que nele o mundo cabia.

Nunca consegui empinar pipas
Nem meu coração não é tão grande
Nem grande é o meu amor
Pelas pipas coloridas e alegres.

Nunca consegui empinar pipas
Como isso fosse tão importante
Assim!

A bola vermelha

Quando tinha quinze anos
Uma bola vermelha lancei
Num tanque profundo
Foi ao fundo com todo seu peso.
Quando as rugas começaram
A marcar o meu rosto antes jovem
Uma bola vermelha submergiu
Lá do fundo de um poço.

Quando tinha quinze anos
Uma melancolia da incerteza
Visitava-me todas as noites.
A mesma melancolia sem certeza
Alguma agora me visita dia e noite.
Nunca me esqueci da bola vermelha
Que me foi dada por uma menina
De olhos enormes e fumegantes
Nunca me esqueci da menina
Mas ela de mim se esqueceu.
Só tenho melancolia
Como amiga
Quando nenhuma outra
Achega de mim.

Sem dor no silêncio

Uma pedra no rim
Pode doer muito
Um espinho no pé
Pode doer muito
Doe muito mais
Quando as palavras
Confundem no desencontro
Dos corações que não se encontram
Mais.
Quando as palavras
Incomodam
Deixamos que o silêncio
Fale por nós.

Caminho a incerteza

Ainda que um dia
A morte me visite
Não terei ilusões
Da vida iludida que levei
Em cuja casa de máquinas
Impulsionado pela eletricidade
Do atrito das peles polarizadas
Levantei e andei.
E continuo andando
Sem saber para onde ir
Posso caminhar em destino incerto
E cair num abismo
Profundo de minha existência.
Meus sapatos rasgaram
De tanto andar
E não chegar a lugar algum
Pois nunca saí do mesmo lugar
E parado continuo
Recebendo o orvalho em meu rosto
As pedras que não ferem mais
Pois ferida alguma se compara
Àquela que se tem
No mais fundo da alma.
Uma ausência que outrora
Não sentiria
Esperança que se tornou
Confetes carregados pelo vento.

Viver para quê!

L'homme est une passion inutile

Jean Paul Sartre

Amor, Amor

Quando o mar
quando o mar tem mais segredo
Não é quando ele se agita
Nem é quando é tempestade
Nem é quando é ventania
Quando o mar tem mais segredo
É quando é calmaria
Quando o amor
Quando o amor tem mais perigo
Não é quando ele se arrisca
Não é quando ele se ausenta
Nem quando eu me desespero
O amor tem mais perigo
É quando ele é sincero

Sueli Costa/cantada por Maria Betânia

O Homem desiludido

Diu Welt ist ûzen schone,
Die Welt ist aussen schön
O mundo é belo por fora.

wîz grüen unde rôt
weiss, grün und rot
branco, vermelho e verde.

Und innân swarzer varwe,
Und innen von schwarzer Farbe,
E dentro de cor preta,

vinster sam der tôt.
finster wie der Tod.
e escuro igual a morte.

Walther von der Vogelweide

Sem razão

Nihil est sine ratione

Vivendo radicalmente

Se esta viva insana
Pudesse ser vivida inteira
Sem fazer escolhas
Totalmente vivida
Com tudo de bom
Com tudo de mal
Anjos e demônios
Sem distinção alguma
Aceitando o vento certeiro
Das paixões repentinas
Que após sua passagem
Deixa um campo de destruição
Poderíamos subir no torvelinho
De um imenso furação
E ver dentro todo o inferno
E ver que até mesmo
Aquele que lá habita
Possui beleza e fala a verdade
Como ninguém falou antes.
Somente quem viveu assim
Pode falar a respeito
Da força imensa do ribombar
Do trovão.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Fogo do coração

O fogo que nesta terra arde
Em gases sulfúricos
A tudo consome.
Se pudesse apagá-lo
A terra toda morreria
Numa torrente glacial
Nada mais restaria
Gramíneas rasteiras
Inclusive os escorpiões
Que preferem radioatividade
Da energia explodindo
Nos tambores sem proteção.
Escorpiões somos
Para a vida
Venenosamente vivida
Em toda sua falsa moderação.

Ferreiro e a ferradura

Uma inquietação solenemente
Percorre a sala de minha existência
Que nada tem de muito especial
Senão uma dor que não sei de onde vem
Só para incomodar
Uma tranqüila decadência dos corpos
Cada vez mais rotos de uma cinza escura
Fuligem do tempo que chegou
Neste instante.
Não resta mais do que
Numa cadeira de balanço
Acariciar o pelo negro da gata
Esta que confunde a noite
Para então fundirem
Numa amálgama metalicamente
Fria e dura.

Diante dos olhos de veneno

Um pouco de veneno há
Em cada punhado de sal
Nas maçãs vermelhas
Como porcelana
Que brilham e encantam
Aqueles que têm o coração puro.
Somente os impuros estão imunes
Pois nenhum veneno pode lhes fazer
Mal.
Nenhum veneno pode ser um mal
Maior do que a desconfiança
Na maçã que outro lhe dá.
O veneno que encanta
A verdade que encanta
Nos olhos que se cruzam
E das bocas palavra alguma.

Noites tenebrosas

Por que temer minha presença
Se nada de mal posso lhe fazer
Se me encontro distante de seus olhos
E indiferente possa viver.
Mas vivo realmente em sua mente
E não há remédio suficiente
Para me destruir.
Sou a chama que arde
E não quer se apagar
Mas você se alimenta
Desta mesma chama
E não quer me matar
Sou o demônio de suas paixões
Que semeia o campo do conhecimento
Das noites tenebrosas
Que assusta somente você.
Justamente nas noites como esta
Que se pode ver mais claramente
Não com estes olhos
Com os outros da alquimia
Do anoitecer.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Por dizer a verdade

Se tivesse que morrer agora
Seja de uma gripe espanhola
Seja de infra-estrutura
De hiper-inflação
Também de hipertensão
Como viveria meus últimos dias?

Afinal vivo meus últimos dias
Como vivo minhas últimas horas
No dia de hoje
Melhor
No dia de agora
Como se as horas
Não existissem mais.

Teria a coragem de viver a verdade
Ou me esconderia
Por detrás dos escudos da miséria
De uma mentira
Mentida para mim mesmo?
Para os outros.

Sempre as mentiras
São mais cômodas
Para se viver.
Sempre as verdades
São mais cômodas
Para se morrer.

Podemos viver
Como fôssemos morrer
A cada instante de nossa vida.

Os poetas morrem
Em seus versos
Morrem por dizer a verdade
E nada têm a perder.

Velhos e delinquentes

De repente deparamos
Que a juventude se fora
E continuamos agindo ainda
Como fôssemos delinqüentes juvenis
Em sua mais ampla irresponsabilidade
Social e política
Por medo de ver refletido no espelho
Uma face que deixou de ser nossa
Desconhecida
Destorcida de toda realidade
Que continua fingindo
Uma emoção que não é mais sua
Nem sua é a alegria
Disfarçada no canto da boca
Em riso amarelo
Que a ninguém mais engana.
Crescemos o suficiente
Para termos rugas
Só não temos
Não temos vergonha
Da farsa que continuamos
Representando
Como mal ator
Atrizes de um teatro mambembe
Para divertir
Os loucos livres de qualquer
Censura.

Dizer é calar pela eternidade

Por quantas vezes errei
Somente por falar demais
Quando a fala se fez necessária
Poderia ter me calado
E os excessos de uma palavra mal
Colocada
Evitaria mal estar em toda população
Ainda que a intenção fosse boa
Não foi bom o entendimento
Que de mal entendido
As bocas se calaram de vez
Tarde demais.

Mas no silêncio purificador
Nenhuma palavra vem a calhar
Que penetrando fundo
Lá no fundo da alma escura
Nenhuma luz é necessária
Nem nada
Apenas a síntese
Da união que dispensa
Qualquer explicação
Que não necessita
De palavra.

domingo, 15 de agosto de 2010

A inutilidade do desespero

Não existe mais alegria
Nos olhos dela
Como outrora se fazia
Nem o brilho está mais presente
Quando se faz presente
Uma desconfiança atroz
Que percorre a linha do horizonte
Cada vez mais distante
Dos olhos que tanto
Queria bem.

Quando a inocência da alma
Perdida fica
Por causa estranha
Toda a vida se torna nublada
E nubla também toda a existência
Da alegria de viver.

Cada vez mais sozinho vai caminhando
Numa estrada de espinho
Tendo por companheira
A solitária sombra da noite
Fulguras de pirilampos
Ofuscando um sonho
Dentro de um sonho de outro.

Errantes somos passageiros
Do tempo
Que erramos na geografia
Que erramos na história
Sem encontrar o encontro
Que perdido ficou
Para trás.
Nem o choro mais consola
Diante da estupidez
Desta vida escrita num papel de seda
Desfazendo-se na correnteza
De nossa vida curta.

Experiência no dia-a-dia

“A expressão do que sentimos é o exercício que prova a vivacidade da alma e o amor que esta tem pelo mundo.”

E foi justamente essa
Que expressou o que tinha que expressar
De coração para coração
Pura expressão

Felicidade, alegria
Tristeza, melancolia
Frutos de um mesmo experimentar
Só a pureza da expressão

E nos versos a rimar
Da tentativa desprovida
De uma ousada vitória
Percorrendo o caminho dia-a-dia

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Conto retrato - O fim da infância

Ele já não enche mais a casa de alegria.
Naquele fim de tarde, entrou pela porta a fora
os olhos secos como vidro, as mãos trêmulas
cheiravam a gasolina, queria se esconder...