segunda-feira, 31 de maio de 2010

Alice viva

Um filme antigo assistia
Ou era o filme que me assistia
Todos os dias no cine da vila
Fazia calor naqueles dias
Em que pela primeira vez
Via Alice no país das maravilhas
Com Alice viajei fundo em meus sonhos
Foi ela minha primeira companhia
Depois dela outras vieram
Mas ainda viajo na companhia
De Alice sempre viva.

domingo, 30 de maio de 2010

Cai a temperatura

Quando a cidade começa
A forrar-se de folhas secas
Uma onda fria passeia
Procurando a próxima vítima
Um mendigo pode ser
Um louco perdido pelas ruas
Pode ser
Até pode esfriar
O calor que ainda no corpo
Ainda não desapareceu
O pouco de calor
Que anima
Esta alma desanimada
Que solitário
Caminha.

El arco y la lira

La poesía es conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz de cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionária por naturaleza; ejercício espiritual, es un método de liberación interior. La poesía revela este mundo; crea otro. Pan de los elegidos; alimento maldito. Aísla; une. Invitación al viaje; regreso a la tierra natal. Inspiración, respiración, ejercício muscular. Plegaria al vacío, diálogo con la ausência: el tédio, la angustia y la desesperación la alimentan. Oración, letanía, epifania, presencia. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimación, compensación, condensación del inconsciente. Expressión histórica de razas, naciones, clases. Niega la historia: en su seno se resuelven todos los conflictos objetivos y el hombre adquiere al fin conciencia de ser algo más que tránsito. Experiencia, sentimiento, emoción, intuición, pensamiento no-dirigido. Hija del azar; fruto del cálculo. Arte de hablar en una forma superior; lenguaje primitivo. Obediencia a las reglas; creación de otras. Imitación de los antiguos, copia de lo real, copia de una copia de la idea. Locura, éxtasis, logos. Regreso a la infância, coito, nostalgia del paraíso, del infierno, del limbo.

PAZ. Octavio, El arco y la lyra, México, Fondo de Cultura Econômica, 2003. (p.13)

Uma margarida à Margarida

Ao despetalar
Da margarida
Arranco uma pétala
Arranco outra
Bem me quer
Mal me quer
Bem me quer
Como que a vida fosse
Uma flor de margarida.

Comecemos novamente
Bem me quer...
Mal me...
De tanto tentar
As pétalas acabaram.

Sobe e desce da gangorra

Ao brincar de gangorra
O menino e a menina
Lá encima o menino
Lá encima a menina
Lá embaixo o menino
Lá embaixo a menina
Uma vez que sobe
Uma vez que desce
Desce e sobe
Sobe e desce
O menino e a menina
Sobe um avião
Desce um avião
No sobe e desde
Desta vida incerta
Que sobe e desce
Que desce e sobe
Oscila também
A temperatura do humor
A temperatura do amor
O que antes subia
Logo depois
O que antes descia
Subia e descia
Descia e subia
Sem nunca deixar
De oscilar
Quem está encima desce
Quem está embaixo sobe
Ninguém fica totalmente
Por cima.
Ninguém fica totalmente
Por baixo.
Quem está embaixo
Prepara-se para subir
E como a subida é agradável
Quem está encima
Prepara-se para descer
E como a descida é agradável
Um escorregador somente desce
E desce profundamente
Deslizando profundamente
E entrando fundo
Em nossa existência
Mais profunda.

O entregador de gás

Lá naquela casa uma mulher
De quarenta
De cinqüenta
Também espera o homem do gás
Subindo a ladeira
Acima sempre acima
Sem se cansar um botijão de gás
Para alegrar os corações
Para esquentar a janta
Antes fria
Antes sem janta alguma
Sem nenhum entregador
Sem gás
Sem amor algum
Sem mulher alguma
Nem mesmo sem a esperança
Que um dia chegasse
De surdina
Tocando buzina
O entregador de gás.

Subindo a ladeira
Acima sempre acima...

um dezenho

Praça Patriarca, São Paulo


sábado, 29 de maio de 2010

Um poço profundo

Havia no fundo da casa
Um poço profundo sem fundo
Que passasse um raio de luz
Que tudo que nele caia seria
Engolido inteiro pelo desconhecido
Nada sabia o que realmente havia
Lá no fundo do poço
Talvez houvesse a mulher que amava demais
Como demais fosse possível amar
Talvez houvesse o homem cujo amor foi demais
E sucumbiu na própria loucura do ato
De amar desesperado.
Quem nunca mergulhou
No fundo do poço ainda não viveu
O mais profundo das emoções vividas
O beijo gelado da morte
Daquela mulher que sempre nos espreita
Seduzindo-nos com seu corpo de sereia.
Entregando-nos a este amor
Morremos a cada instante
De calor que afasta qualquer
Pressentimento.

O pântano de nossa realidade

Esta febre repentina
Traz o vapor dos pântanos
Num caldeirão de lamentações
Em que as bruxas lançam dentro
Tufões e lagartixas
Maldizendo esta vida de vadiagem.
Nas esquinas de alta boemia
Que de madrugada o amor é cinza
Vendido por preços módicos
Aos transeuntes solitários
Paralíticos em suas cadeiras mecânicas
Velhos desesperados pelas mulheres
Que envelheceram e não satisfazem mais.
De madrugada os cães sem raça
Saem à procura de não sei quem mais
Nada mais encontram
E retornam cabisbaixos e envergonhados
De um cio que não foi sanado.
Mas quando a manhã chega
Os vapores se dissipam
Ao corte de um vento soprado
Para que todos possam acordar
De seus sonos
Muito mais reais do que
A realidade irreal dos olhos
Esbugalhados e acesos
Dos camaleões.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O amor que não acontece

Um pedaço de parede
Seria suficiente para
Rabiscar uma declaração não dita
Maldita seriam as palavras
Postas nas frinchas de cal
Borradas de tristeza e emoção
De uma cidade que anoitece
De uma população que se perde
Pelas trilhas férreas da desilusão
O amor que não acontece
Na contração dos vagões
Que rápidos passam
Diante dos olhos
Diante do corpo que esmorece
O amor que não acontece
Por falta de tempo
Que sem importância alguma
Fica em segundo
Em terceiro fica
Pois a vida passa
E alguns não viveram
Um tempo que o amor
Tinha importância
A vida passa em instantes
O amor que não acontece.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Na irresponsabilidade lírica

Pelos olhos frios e distantes
Que pode esconder os sentimentos
Mais profundos
Não esmorecem diante
Do maior encantamento
Pode ser por vaidade
Pode ser por covardia
Pode ser pelo medo de se ver
Sucumbido diante da própria
Fraqueza de admitir a fraqueza
Da condição humana.

Este homem descontrolado
Que ama e se perde na bebedeira
Das garrafas de perfume
Morre a cada minuto no desencantamento
Dos livros de poesia
Cada vez mais deixados de lado
Totalmente empoeirados
Sem que ninguém mais os leia.

Amar o errado é viver a poesia
Presente nas vias tortas
Dos labirintos minotauricos
Em que a morte é certeira.
Uma vez que morre
Pode-se viver na eternidade
Num poema ainda a ser escrito
Esperança que nunca se vai
No ralo da desesperança
Uma oração em que nada se pede
Tudo se perde na infinita vontade
De ser levado pelas cantigas
Das bruxas de Circe
E ser devorado por todas elas.

Toda ordem é destruída
Instalada a desordem que se arruma
Como verso improvisado.

Telefone público


terça-feira, 25 de maio de 2010

Perdidos numa rua sem fim

Certa vez me perdi
Foi numa feira
Todos passavam por mim
Mas ninguém me notava
Olhava para cima e via
Todas as cabeças que por mim
Passavam
Mas ninguém se importava
Era baixo demais
Quase a tropeçar em suas pernas
Era quase invisível
Naquela massa de gente
E o céu azul tinindo quase ao alcance
De minha mão
Ainda hoje me perco
Na multidão como antes
Sem que ninguém se importe
Quase despercebido
Se não pisasse
No rabo de um cão.

Ainda hoje me perco
Nas linhas mal traçadas
De um destino que não existe
De um romance inacabado
De uma página carcomida
Pelo tempo amarelecido.

Ainda hoje me perco
Nas lições mais elementares
Da química orgânica
Na explosão dos elementos
Pela reação desencadeada
Pelos contrários.

Ainda hoje me perco
No labirinto das emoções
Errando em cada uma delas
Sem que nunca aprenda
Que emoção alguma
Ainda
Valha a pena.

Galeria Prestes Maia, São Paulo


Foto: Bruno Mitih

La tormenta

En la cerrazón de la tormenta
solo veía tus espaldas como sombra
en el centro de la pequeña canoa.
Sabía que te protegia de la lluvia
una vieja capucha azul.
El aburrido ruído del motor
no nos alejaba del inmenso hervidero
en que se había convertido el lago.
La tormenta
nos había puesto en la mano de un dios enfurecido.

Pero casi estábamos dichosos cuando un relâmpago
iluminó los grande árboles de la orilla del lago
y vimos ramas de oro y plata instantâneos.
Entonces volteaste y alargaste tu mano hacia mí:
también te dio miedo la súbita oferta de fulgurar
y desaparecer.

José Watanabe, Banderas detrás de la niebla, Lima, Edicciones Peusa, 2006.

A vida passa fora da janela

Por detrás das cortinas de seda
Artificial mora uma velha senhora
Quem passa de fora não a vê
Mas de dentro tudo vê
E na tarde sonolenta
Quando a cidade dorme
Lá está a velha senhora
Na janela a ver a cidade inteira
Passa João
Passa Maria
Passa o guarda municipal
Passa também a vida passageira
Uma boiada inteira
Uma tristeza passageira
Uma banda tocando
Uma sonata militar
E uma rajada de rojão
Quebra o silêncio sorrateiro
Para a festa de são joão

Por detrás das cortinas de seda
Artificial mora uma velha senhora
Já velha de tanto ver
Sorri com sua boca banguela
À espera do dia passar
Um dia desses também
A velha senhora vai embora
E todos os seus segredos
Seus amores
Desamores
Desta vida sem humor algum
Todos os seus segredos
Da vida de todos desta
Cidade inteira.

Um dia de folia

Minhas calças rasgadas
Continuo a usar
Um remendo bem largo
Sem negar sua utilidade
Com o tempo ficaram rotas
Com o tempo também
As rugas surgiram do nada
Numa trama intrincada
Da própria vida
Impregnada de poeira
Dos tempos passados
Ainda que lave a cara
Nenhuma cara nova surge
Nenhuma calça nova surge
Nenhum homem novo surge
Negar a sujidade
Como podemos se na vida
Sujamos a alma constantemente
Com o veneno do amor
Que destrói o corpo
E consome a alma
Cada vez que sente
Sem senti-la como seria
Se na vida inteira somos
O amor não realizado
Por isso podemos apenas
Contemplar o desfile das emoções
Num carnaval veneziano
E assistir a beleza dos movimentos
Do pierrot e da colombina
Cujo encontro se deu apenas
Em um dia.

Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
il faut oublier
tout peut s’oblier
qui s’enfuit déjà
Oblier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le couer du bonheur
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Moi je t’offrirai
Des perles le pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai le terre
Jusqu’après ma mort
Pour couvrir ton corps
D’or et de lumière
Je ferai um domaine
Où l’amour sera roi
Où l’amour será loi
Où tu será reine
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je t’inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants-là
Qui ont vu deux fois
Leurs coeurs s’embraser
Je te raconterai
L’histoire de ce roi
Mort de n’avoir pas
Pu te recontrer
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
On a vu souvent
Rejaillir le feau
D’un ancien volcan
Qu’on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu’un meilleur avril
Et quant vient le soir
Pour qu’un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s’épousent-ils pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je ne cacherai lá
A te regarder
Danser et sourire
Et à t’écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L’ombre de ton ombre
L’ombre de ta main
L’ombre de ton chien
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A dor do amor que se foi

Uma dor desconhecida
Destas sem motivo algum
Que fere o coração do homem
Não é apenas de tristeza
Mas de desolação
Que se esconde por trás
Da frágil couraça de aço
Que se quebra em instantes
Esfacelando-se no chão
Quando não se tem motivos
Diria assim mesmo
Pode ser força de expressão
Pode ser uma sutil negação
De sua própria fraqueza
Ainda que não tenha motivos
Aparentes
Mais profundo motivaria
Razões totalmente irracionais
Que não podem ser tocadas
Nem entendidas
Nem ditas
Nem faladas
Se assim for a medida
Das contradições.
Nada pode ser feito
Senão viver a melancolia
De viver sem razão

Vivemos sem razão
Apenas por viver
Um momento fugaz
Do amor que se foi.

domingo, 23 de maio de 2010

Colecionador de figurinhas

Apesar de ter sido escoteiro
Nunca fui muito bom
Nem em matemática
Nem gramática
Acabei me perdendo nesta vida
Perdi a hora do tempo
E minhas sobrancelhas
Embranqueceram
Perdi também amores
A última a mais dolorida
Perdi a vontade de viver
Mas por teimosia
Coleciono figurinhas
Como um grande idiota
Todos riem dele
Todos zombam dele
Mas nada disso importa

Ladrão da memória

Havia na memória de
Minha infância ladrões
De criança
Seu saco enorme nas costas
Carregava não sei o que
Um dia carregou meu irmão
Deixei de brincar de esconder
E perdi a minha infância
Mas agora crescido
Novamente me vem
O mesmo ladrão
Sorrateiramente vem
E tenta roubar
Por pouco roubar
Meus sonhos de adulto
Meus sonhos de criança
Maria Lúcia
Minha última namorada

Maria Lúcia era a filha
Da empregada
Maria Lúcia era a mulher
Da empresa falida
Que queria apenas
Namorar!

sábado, 22 de maio de 2010

Hiato

vinha compondo um poema todo de silêncios
uns breves, outros longos,
dispostos na extensão da respiração
alguns deles rimaram
outros fizeram doer o coração
empreendi esforços consideráveis
procurando por alguns
que expressassem exatamente
o que se queria dizer naquele instante
há silêncios de todos os tipos
forçados, pedidos, rogados, conformados, submissos, envergonhados, sem fôlego
é difícil, por isso, achar o tom correto
de repente uma fechada trouxe-me de volta ao mundo dos sons
o pneu da bicicleta derrapou no asfalto
a buzina do Terminal Pirituba soou no meu cangote
e o mundo se reestabeleceu
em agradável sinfonia

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Guerra das palavras

Ainda que me entenda
Por palavras
Nenhuma palavra se basta
Para expressar uma parte que fosse
Daquilo que poderia expressar.
Por isso tentamos
Fracassando tentamos
Mais uma vez tentamos
Sem sucesso expressar.
Assim feito calamos
E neste vazio quem sabe
As palavras não mais importam
Nem mesmo a expressão
Nem uma cor mais exuberante
Apenas das sombras sabemos
E da lua quem sabe
Nada sabemos
Por isso não falamos da lua
Nem do orvalho não sentido
Apenas do frio que congela
Os ossos e a pele pálida
Metálica é o corpo dos
Soldadinhos que brincam
De guerra contra as bonecas
De cara de louça pintada.
Que me importa as bonecas
São apenas palavras
Nada mais me importa.

Pelas penumbras das esquinas

Os cães ladram na madrugada
Perdidos que estão sem direção alguma
Confusos de seus destinos caninos
Ladram para a lua crescente
Ladram para toda a gente
Como que ladrar fosse importante
Em suas vidas de cão.
E errantes como os homens
Vagam pela noite adentro
Invadindo as esquinas de todo
Ressentimento.
Pois quando chega a penumbra
Uma multidão de desconhecidos
Mudos e paralíticos podem
Expressar seus sentimentos.
Alguns são cegos que enxergam
São mudos que podem falar
E sua fala truncada revela
Uma verdade que se fala
Em voz pausada
Quase um sussurro
Que a vontade de viver
É a vontade de morrer
Em pleno distanciamento.
Nada pode ser mais belo
Do que a solidão sentida
No abandono das lembranças
De um amor passado
Que não passa mais
Do que um fantasma.
Fantasias de uma festa
Sem colombina.

As duas mulheres da estação

Acima dos fios de alta tensão
Acima de onde podemos visualizar
Lá acima do prédio acima vive
Uma mulher esquizofrênica.
O marido a deixou
Não queria adoecer
Os parentes a deixaram
Não queriam compromissos
Sua única companhia era
A mãe sofredora de degeneração
Uma cuidava da outra
Esperando o trem passar.
Todos os dias às quinze
Impecavelmente naquele horário
Sem atrasos o trem passava
Sacolejando aos trancos
Transportando bois
Uma boiada inteira
Até que veio a recessão
Veio a depressão
O trem parou de passar
O que restava então
Às duas mulheres
Que sempre às quinze
Podiam ver
O trem passar.
Nem mais esta alegria tiveram
A mulher esquizofrênica
Outra em degeneração.

Mentiras do cotidiano

Quantas mentiras contamos
Em nossa pobre existência
Mentimos para o outro
Descaradamente mentimos
Para nós mesmos
Seja por vaidade
Seja por elucubração
Seja para parecer melhor
Mais forte e genial
Mentimos mais ainda
Quando negamos nossas fraquezas
Em admitir que amamos
O amor impossível
Dos romances trágicos
Do simples cotidiano
Dos encontros
Dos desencontros
Das almas afins.
Negamos por egoísmo
Simplesmente negamos
E mentimos novamente.

Nada mais busco

Que pode ser eficaz
Para curar dor no estômago
Se nenhuma medicina é capaz
De curar os males do espírito
Desta falta de ar
Desta melancolia
Sem motivo aparente
Todos os motivos do mundo
Juntos não seriam suficientes
Para preencher o vazio
De uma vida sem razão.
Meus sonhos se esvaíram
No ralo fundo da existência
Sem sonho algum
Fingindo inocência
Busco no quarto escuro
A luz que me aquece
O fogo que purifica
E no silêncio mil vozes
Ecoando em tamanha quietude
Como as cigarras
Explodindo os pulmões
De tanto cantar
Canto triste
De um cancioneiro popular.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Frio que mata e morre

Quando os tempos mais frios
Visitam-me um pouquinho
Meu amigo reumatismo
Nunca me deixa sozinho.
Dores que não sentia antes
Aquelas que arranham a alma
Felinamente chegam devagar
Se instalam como sua casa
Para não sair mais.

Dentroufora

Cores vetustas
Astutas, ágeis dores
Medos incidentais.
Sento, sinto
Respirando imóvel...
(observo impassível,
viajante olhando a janela)
Não mais imóvel que os móveis
A mosca pousa na mão,
No chão, na testa...
Esfrega as patas em clima de festa
(sou sapo, imóvel te observo -
gato e rato)
Mas sapo não é gato,
isso é fato
então não te mato.
Sou pedra, quadro,
Sou estátua de Buda.
Nada...
Sou?
É como é.
(aranha apanha a mosca)
Sou a panela que ferve:
Fora imóvel, mas fervente
Por dentro, água quente
fervente
Dentro e fora,
Dentroufora...
Plim... plim... plim...
Vou embora.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Os jogadores velhos

Toda vez que por lá passava
Velhos aposentados jogavam
Xadrez.
Toda vez que por lá passava
Meninos que matavam aulas
Jogavam dados.
A vida passava
Velhos passageiros
De um tempo passado
Passaram por um triz
Nada deixou de sagrado
Senão um rastro
De lamentações.

Que vida mais urgente
Tem pela frente
Meninos que matam aulas.
Que vida mais rápida
Passaram os velhos aposentados
Que jogavam xadrez.

Será que um dia
Meninos que matam aulas
Aprenderão a
Jogar xadrez?

Somente os que sabem
Sabem jogar
O jogo da vida
O xadrez da vida
Simplesmente
Xadrez!

Indiferente caminha

O frio que sinto na pele
Também fere a pele da alma
Que antes quente
Esfriou-se por inteira
Que não sente mais
O que antes sentia
Indiferente caminha
Caminhos de pedra
Caminhos tortuosos
Sem mais nada querer
Uma dália a fenecer
Diante da terrível nevasca
Do inverno que está
Por chegar.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Abandono

Onde quer que vá
São os meus chinelos
Que me seguem
Desconsolados do abandono
Um pé para cá
Outro para lá
Onde quer que vá
São os meus chinelos
Que me seguem...
Onde quer que vá
São os seus olhos
Que me seguem.
Perdidos nas esquinas
Dos desencontros.
Ainda que estejas
Diante de mim
Mais distante fica
De minha vida
Como que a minha vida
Separada ficasse
De tua vida.
Toda tristeza sentida
Não cabe mais
Num coração só
Se pudesse reparti-la
Repartiria também
O que resta do amor
Que um dia sentia.

domingo, 16 de maio de 2010

As mil máscaras

Numa caixa de papelão
Guardo as mil faces
De um teatro de máscaras
Que uso em cada ocasião
Sou alegre
Sou triste
Lacônico
Sou falante
Sou gramofone
Sou ignorante
Sou a cara do mundo.

Um dia resolvi
Tirar todas as máscaras
E ver a minha cara
Tinha todas as caras
Tinha todas as máscaras
De minha existência.

Não necessitei mais
De máscara alguma
Minha cara se moldava
A todas as máscaras.

Nem mais sei quem sou
Nem mais sei quem fui
Aquilo que fui um dia
Nem sei mais
Se era máscara
Se era outra coisa!
Dúvida que distorce
Ainda mais
Minha cara
Minha máscara.

Se triste amor de outrora

Nada mais lembra
Em sua face que antes
Faceira era
Nenhuma imagem
Remota que seja
Me lembra mais
Do amor que se fora
Que antes animada
Desanimada ficou
Perdeu total sentido
Caiu e se quebrou!

Cidade dos solitários

Muitos são os solitários que
Perambulam sem rumo algum
Perdidos nesta grande cidade.
Muitos são os solitários que
Ainda não encontraram sentido
Algum que seja para suas vidas
Nesta imensa cidade.
Muitos são os solitários que
Vivem nesta cidade
Alguns vivem ainda
Outros não vivem não
Solitários desta cidade.
Numa multidão de caras
Desconhecidas e imerecidas
De toda atenção
E assim vão envelhecendo
Sem amigos
Alguns amigos de poucos
Horas
Pois amizade não é preciso
Nem preciso é falar de nossas
Angústias
Pequenas carências
Que a ninguém interessa
Senão ao próprio que sente
Sinais de carência
Como que carência fosse
Algo proibido
De falar
De sentir
Como que sentir fosse
Algo proibido
Se solitário fosse
Apenas uma palavra
Uma palavra que fosse
Descartada de todo
Vocabulário nacional
Internacional da linguagem
E carente de palavras
De significado das palavras
Solidão que carece
Da própria solidão
Como palavra
Cidade de imensa
Solidão...

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Voto de silêncio

Quando muito se fala
Muito pouco se entende
Se entender fosse possível
Uma fala sincera que fosse
Melhor do que qualquer fala
É não falar coisa alguma
Sem criar constrangimento
Numa fala errada
Numa fala carregada de
Sentimentos opostos
Para quem ouve
Ouve somente o que quer
Pode ouvir o que não disse
Pode ser outra coisa
Totalmente outra
Daquele que se falou.


Em momentos de dúvida
Sem dúvida alguma
Silenciosamente se cale.
Toda dúvida se esvai
Nem toda certeza vem
Ainda bem que deve
Ser assim.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Em lugar algum

Certa vez quis de vez
Ir-me embora de vez
Para a Península de Kanchatka
Primeira vez que ouvi falar
Dela era com ela que queria ir
Por muito tempo me esqueci
Nem mais ouvi falar dela
E Kanchatka se tornou uma
Fagulha do passado.
Mas agora que ela se foi
Kanchatka retorna mais uma vez
E uma vontade de ir
Ir-me embora de vez
Sinto apaziguar meu coração
Nada mais me prende aqui
Solitário viajante
Que errante caminha
Quem conduz são as sandálias
Rotas e estropiadas
Uma bengala para se apoiar
Um caderno de notas
Um livro de Baudelaire
Sebento no braço.

Que vontade de me ir
Ir-me embora de vez
Para a Península de Kanchatka.

Amor que não acontecia

Maria Lúcia lia
Livros de poesia
Mas um dia conheceu
Toninho Paixão
Com que se apaixonou
Também Paixão
Por Maria Lúcia
Se apaixonou.
Foi por amor que
Maria Lúcia deixou
De ler poesia
Deixou de viver
Sua vida
Deixou tudo por amor
A Toninho Paixão
Mas um dia se foi
A Paixão se foi
Sorrateiramente
Se foi como chegou
Sorrateiramente
Se foi
Pois amor
Somente existe
Nos livros de poesia
Não no mundo
Somente existe
Em nossas esperanças
Mas a vida é construída
Na desesperança
E nos negócios lucrativos
Amor somente existe
Nos livros de poesia
Apenas neles
Apenas neles
Se amor existisse
Fora deles
Não seria amor
Pois amor somente
Rima com poesia
Não rima com vida
Que impura vida
Amor algum existe.

domingo, 9 de maio de 2010

Amor do tempo passado

Quantas vezes te encontrei
Quantas vezes te amei
E ainda assim não te
Conhecia
Desconhecida era
Senhora do tempo passado
Cujos rastros deixados
Foram-se de uma vez
Nunca foram deixados
Nem no tempo
Nem no espaço
De uma existência
Efêmera
Sem importância alguma.

Que me importa a simpatia
Pelo seu rosto que reluz
Tão próximo de alguém
Que conhecia
Pensava apenas
Que conhecia
Mas não passava de
Um sonho
Um sonho que ainda
Sonhava esperanças
De um sonho possível.

Todo conhecimento
Algo impossível
Pois conhecimento não há
Daquilo que é tão somente
Sombra.

Todo amor é uma sombra
Em dias de sol
Em dias de chuva
Todo amor é pouco
De pouco acabou desaparecendo.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Imagem de pedra

Acima do morro apenas
Contemplava
Seus olhos finos e miúdos
Contemplavam
Em silêncio profundo
Nada dizia
Nada pensava
Nem discriminava
Enquanto os homens
Homens e mulheres
Carregando lanças e escudos
Se lançavam em derradeira
Luta
Em defesa de suas idéias
Lutava-se por idéias
Matavam e morriam
Por idéias
Certas para quem
As defendiam
Idéias apaixonadas
Vermelhas e verdes
Até que o chão se
Manchasse do suco
Da beterraba.
Acima do morro apenas
Contemplava...
Um Buda de pedra
Contemplava...

O que tem a nos ensinar
Um Buda de pedra
Um Buda que apenas
Contemplava.

Oração do Irmão Chico

Nasceu chamando Francisco
Logo mudou para Chico
Era Chico para cá
Era Chico para lá
Chico da margem esquerda
Chico da mão canhota
Chico claudicante
Chico que todos achavam
Esquisito
Tornou-se solitário
Macambúzio
Macacado
Não tinha amigos
Foi quando começou
A conversar com as ervas
Ervas daninhas
Flores de laranjeira
Alcachofra
Mangueira
Seus irmãos vegetais
Irmão almeirão
Irmã beterraba
Lá veio o coelho danado
E comeu o irmão
Cenoura
Chico se sentiu ultrajado
Veio também a macaca
Vera e comeu também
A banana no cacho
Chico quis morrer de
Tristeza
Chico não comia nada
Nem amigos tinha
Mais sozinho ficou
Sozinho como sempre
Sentiu
Chico era outro macaco
No paraíso perdido
E abandonado pelo criador
Adotado pela criatura
Errante
chamado
Sancho Pança

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Despotismo da razão

Quando meu discurso
Justificado
Tem toda a razão
Não aceito mais
Nenhuma outra razão
Pois razão não há.
A razão é a que tenho
Por isso imponho.
Exijo sacrifício do outro
Apenas do outro
Pois de mim
Razão tenho.

Ainda que a razão
Seja a razão das medidas
Se esta razão serve
Para oprimir o outro
Carente de uma razão
Justificável
Razão não há
Para a razão
Ser a razão
Para impor sua
Atitude apenas
Apoiada
Na própria razão

Irracional sou
Isento de toda razão
Faço poesia como
Quem morre
Faço poesia como
Quem nasce
Sem razão alguma.

A guerra dos brinquedos

Brincava com seus bonecos
De guerra
Quando surge a menina
Com sua boneca
E juntos resolvem brincar
Juntos
E juntos a boneca e
O boneco de guerra
Resolvem fazer a paz
A paz duradoura até
O entardecer
Quando novamente
Cada um vai à direção
Diferente
E distante começam
As ameaças de guerra
“Meu brinquedo é mais
Bonito que o seu” diz um
Diz o outro
Diz a outra
“Seu brinquedo é mais
Feio que o meu”
Então as relações estremecem-se
Surge a tensão
Cada um defendendo
Aquilo que te apetece
Cada um atacando
Aquilo que não te apetece
Assim o boneco de guerra
Continua em guerra permanente
A boneca que amava a paz
Não a ama mais
Em guerra constante
Veste o uniforme
Levanta a bandeira
Afia as unhas e os dentes
E espera o próximo ataque
Tudo em função de uma idéia
Que não muda
Nem cede
Não perde
Se perder a guerra
Também cede e acaba
Toda a guerra
A perigosa brincadeira
De fazer guerra
Inútil e bárbara
Guerra!

terça-feira, 4 de maio de 2010

O ar que respiro

Em minha cidade há
Um campo da diversidade
Há uma parada gay
Também uma evangélica
Há uma banda de rock
Também uma filarmônica
Há estudantes de biologia
Também de filosofia
Há esportistas nas ruas
Também bêbados nas calçadas
Nesta cidade todos vão adiante
Outros em sentido inverso
Muitos andam de carro
Muitos outros andam a pé
Alguns nadam nas piscinas
Outros ainda vão de trem
Ainda bem que
Ninguém me proibiu
De andar onde quero
De comer o que quero
De beber o que quero
De respirar o ar sem pagar
Ainda bem que
Vivo nesta cidade
Multidão que se comunica
Com todas as suas
Diferenças
Que bom que as pessoas
São diferentes!

Amor na diferença

Nem somos melhores
Do que ninguém
Acredite!
Apenas diferentes
Nem por isso
Deixarei de lhe dar
Água quando estiver
Com sede
Se estiver com fome
Darei o meu lanche
Se quiser carinho
Também darei sem economia
Podemos andar juntos
Em nossas diferenças
Sem dilemas
Apenas amigos diferentes!

A idéia que se tornou abstrato

Quando as nossas idéias
São mais importantes que
Nossos amigos
Não há mais campo para
A amizade
Só restam as nossas idéias.
O que fazer com elas
Se não temos com quem
Conversar.
Pois os amigos se foram
Se pudéssemos por um momento
Um momento sequer
Abandonar nossas próprias
Idéias
Mas somos orgulhosos
Demais para tanto
Abandonamos os amigos
Nunca as idéias.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Caixa de secos e molhados

Toda vez que passava
Na rua em que ela estava
Caixa de um mercadinho
De secos e molhados
Parava por um momento
Fingia algo a mais
Como ler o jornal
Parou de fingir e
Enchendo-se de coragem
Elogiou seus olhos claros
De um infinito azul marinho
Marcaram o encontro
Depois do desencontro inicial
Foi naquele ponto que
Ele teve uma agradável surpresa
Sua amada não tinha a perna direita
E ele não tinha a esquerda.

Palavra a ser criada

Nenhuma palavra é suficientemente
Clara para expressar sentimentos
Que criamos em nossa mente
Ainda ausente de palavras
Por isso inventamos não apenas
Palavras mas sentimentos
Que possam significar
Em nossa carência de sentimentos
Um sentido para a vida
Que nem precisa ser
Alegre e nem triste
Precisa ser vivida
Intensamente vivida
Inventada a vida
Com todos os sentimentos
Possíveis
Sem medo do sofrimento
Do amor que se perdeu
Sem medo da memória
Que demora a se esquecer
De um tempo de glória
A palavra certa seria
A falta que se sente
Da palavra que ainda
Falta.

O iluminado

Olhar de longe a lona do circo, perfeitamente esticada, era um presságio. Chegar perto, reunia o tempo. A urdidura à mostra em vários sítios parecia ir-se desmanchar nos olhos. As cores: o vermelho, o amarelo e o azul, só eram vistas na memória. Mesmo assim, todo este palácio nômade, como uma pele esticada em ossos pontudos, resplandecia ao sol. O cheiro dos animais vindos de outros continentes era a glória para qualquer um que viesse. Era como chegar antes de chegar, ser tomado por aqueles seres, puros, selvagens, antes de possuir suas formas.

E haviam mastros altíssimos a se perder
e cordas cobertas de couro e betume
suspensas numa altura estonteante.
E havia o equilibrista em roupas justas.

Lá fora o sol quarava as poucas nuvens
Mas no interior do circo o lusco-fusco durava.
Furos no teto de pano criavam corpos celestes
e quase a toca-los, ia o equilibrista sem olhos.

Lá embaixo, a platéia era como pedra
Ninguém quereria jamais trocar de lugar
com aquele das alturas sem rede de amparo.
O silêncio arrastava, cortando a pele do tarol.

O equilibrista tinha as mãos trêmulas.
Esticava as cordas que seriam seu caminho
como se começassem de suas próprias entranhas.
Nem parábola, nem reta demais — os pés sabiam.

Ao atravessar a corda que unia os mastros gigantescos, usava uma vara de bambu que era o dobro de sua altura e dez vezes menos o seu peso. Os pés como casulos em sapatilhas de couro macio, faziam cair, lento, pó de breu, à medida que avançavam. Na travessia, a cabeça calava. Os pensamentos cortavam na velocidade de coriscos para irem sumir depois do horizonte daquele espaço particular, que é a mente. Intangível.

A venda nos olhos, os olhos fechados
Os olhos dos pés, os pés na corda - bamba
Pender para a esquerda faria o mundo da direita transbordar
perder para a direita faria cair o mundo do outro lado também.

Era uma visão trágica mas das mais belas
Corriam lágrimas, é natural, olhos ao alto
e lá no centro, quase imóvel: o ser partícula e seu bambu
virando uma coisa só nos olhos embaçados

O que ninguém poderia pensar naquele momento é que ele, o equilibrista cego, sem as vendas daquela profissão, via, com seus olhos, tudo, sim, muito claro e colorido, em todas as miríades de tons e contrastes e profundidade. Também não poderiam imaginar que ele fosse casado com a domadora de cavalos e que tinham filhos.

O equilibrista sabia o fim de todas as coisas:
a morte. E era isso, o fim do tabu, do desejo
sim, era o abandono, de tudo, a tempo
Mas quem saberia vê-lo assim? Sem medo...

Lá embaixo o público sonhava
deixando os olhos vidrarem - e o coração subir, lento
estavam livres, desprendiam...
Apenas um, sem olhos, nas alturas.

Aquele instante era nunca
O inverso de milhões de anos
cada passo um desequilíbrio
cada suspiro um alívio

Alguns viam uma cruz de prata ofuscante
outros uma estrela iridescente
mas lá no céu do circo era só o homem
um homem pendurado numa linha