quarta-feira, 30 de junho de 2010

Que tudo passe

Junho passa
E passageira passa
E passa já tarde demais
Até o amor do passado passa
Por um triz passa com mãos dadas
Com um passageiro de uma lotação de passagem.
Como me fartei de junho
Que não deixará nenhuma saudade!
Comemorarei outras datas que não seja junho.

Ilusão que foi passageira

O que restou do tempo
Na caída da areia afunilando
No cristal
Senão uma memória
Que aparece
Que desaparece
Sem se dar conta
De sua própria inconstância
Cujo passado é o presente
Apenas na mente passageira
Numa bola de sabão que teima
Sair ilesa numa provável explosão.
Até mesmo Joaninha
Que amava Tenório
Que amava Joaninha
Passados vinte anos
Trocou Tenório por
Mário Ferreira dos Santos
Que surgiu do nada
Nadando contra as ondas.
Mas Tenório continua a amar
Joaninha de vinte anos atrás.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A espera

Aquela moça da janela
Esperava a chegada de alguém
Nunca deixou de esperar
Se era primavera
Esperava as flores florescerem
Se era inverno
Que as flores caíssem dos galhos
Passava a vida toda esperando
Sem que ninguém chegasse.
Um dia chegou
Não se importou com sua aparência
Se era cego de um olho
Se era coxo de uma perna
Foi com esse mesmo
Que ela se casou.

Sem grandes sonhos

A felicidade pode ser
Assim:
Uma tarde domingueira
Enquanto passa a vida
Um prato de macarronada
Enquanto a morte não chega
Sem inovação alguma
Enquanto cada vez mais
As barrigas vão se alargando
E de repente
Alguém grita
É golllll.

A felicidade pode ser
Assim:
Um álbum de figurinhas.

Ao cair da noite impura

Um corpo que caminha
Pela cidade
As ruas não testemunham mais
Suposta insanidade
Dos rostos de vidro
Isentos de qualquer expressão.

E quando a noite chega
Trazendo uma bruma venenosa
De gases carbonizados
Dos fósseis que se estendem
Pelo granito polido pelas rodas
De carroceiros levando
Papelões sem nenhuma serventia
Senão para a decomposição
Mais profundo fica o abismo
Do homem desamparado
Circunvizinho à rocha cujo
Limbo antes verde ressecou.

Ainda que se procure
Seja nos sinais de trânsito
Nos grafites das paredes
Nenhum significado capaz
De salvar da própria destruição
Uma vida que deixou de ter
Sentido capaz de suportar
A angústia em deparar que
Qualquer expectativa
Será em vão.

Indiferente a tudo
Mas como nada mais tivesse
Importância
Continuam comendo
Nas praças de alimentação
Aumentando cada vez mais
Uma desilusão de um amor antigo
Por isso cada vez mais
Ingerem calorias
A fim de esquecer tamanha contradição
De uma vida vivida em revés.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sem nada mais fazer

Nenhuma dúvida pode ser
Mais incômoda do que
A dúvida da própria dor
Em tempos de indecisão.
Joana foi trabalhar
Cremilda batalhar
Para sustento de sua vida.
Se tivesse um papel em branco
Comporia uma poesia
Dessas sem rima precisa
Apenas para atormentar
Aqueles que seguem regras
Demasiadamente precisas.
Mas nada disso disponho
Só tenho uma vontade imensa
De sussurrar numa rachadura
De uma parede abandonada
Um nome qualquer que seja
Pode ser Maria
Josefina ou Filomena
Desde que não existam.

domingo, 27 de junho de 2010

Tempos de jogo

Entre os abrigados
Debaixo de um viaduto
O mesmo mendigo de sempre
A mendiga também de sempre
Nada mudou em suas vidas
Senão a bandeirola que tremula
Bandeira verde e amarela
Em tempos de jogos
Quando a bola rola e a multidão
Em festa grita gol.
Será que eles comemoram
E fazem festa?
Como que a festa fosse
Deles também?

Os riscos da vida

Endurecer as palavras
Pode ser uma medida de prevenção
Sem se deixar
Escorrer pela correnteza
Das indecisões das emoções
Mais profundas.

Deixamos de cair nas malhas
De uma aranha prestes a atacar
Com o doce veneno que mata
A cada momento
De maneira suave e lenta.

Ainda que amor seja decadência
Quanto maior o perigo
Não como deixar de provar
Um gosto amargo na boca.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Audiência

enquanto a seleção joga os desabrigados
esperam em fila a hora de o albergue abrir
a cidade está deserta, todos em frente à tv
mas na fila do albergue não tem tv
e ninguém tem nem rádio de pilha
o albergue fica incrustado num viaduto
sobre a avenida de seis pistas
enquanto a seleção joga os homens da fila
olham pacientes a avenida vazia lá embaixo

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O pássaro

Em minha janela pousou
Um pássaro
E de seu bico
Frágil passou a bicar
O vidro translúcido
Que reverberou...
- Vai-te embora
Pássaro de mau agouro
Deixe meu amor em paz.

Cegonha de papel

Uma cegonha de origami
Não faz a dor passar
Duas cegonhas de origami
Não fazem a dor passar
Mas enquanto a dor não passa
As mãos hábeis vão confeccionando
Cegonhas após cegonhas
Até chegar a mil cegonhas
Sem que a dor passe
Não se desiste de dobrar
Um papel atrás do outro
Origami de papel
Sem se importar
Que a dor nunca vai passar
Mas em momento algum
Parou de dobrar
Um origami atrás do outro
Origami de papel
Sem perder a esperança
Sem a esperança que a dor passe
Apenas dobrar papel
Sem mais nada esperar
Origami de papel
Cegonha de papel.

Felicidade

A Cláudia disse que já havia
deixado pra lá a busca da felicidade.
Disse isso fazendo um gesto largo com a mão
e sorriu.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O saci da parede

Aquele mesmo casal
De mendigos
Ganhou um novo amigo
Na parede de seu quarto avenida
Estampado estava
Um negro retinto
Saci era o seu nome
Em nenhum momento
Reclama
Do que quer que seja
Faça dia faça noite
Saci os protege
Dos olhares maliciosos
Saci é fiel...
Que nada promete
Nem neste mundo
Nem no outro
Imundo é a mente
Dos insensatos
Que não acreditam
No saci
Em sua total inutilidade
Que da parede
Não sai
Não abandona
Mendigos e sábios
Marginais e poetas
Que se encantam
Do bailado perneta
Do saci.

Ilusão de areia

Para quê construir
Castelos de areia?
Se uma onda ligeira
Vem e a tudo derruba
Em instantes apenas
Sem que ninguém se dê conta.
Quando um castelo de areia
Uma onda derruba
Novamente um novo castelo
De areia
Começam a levantar
Desafiando a onda
Que traiçoeira chega
No começo devagarzinho
Ninguém percebe
Nem o menino que levanta
O castelo de areia
Nem a menina que brinca
Com seu balde de areia
Mas de tanto derrubar
Desistem definitivamente
O menino
A menina
Sem castelo algum
Cada um vai para o seu lado
Pois a brincadeira acabou
E como nada tivesse acontecido
Vem a onda ligeira
Não deixando vestígio algum
Que um dia houve na areia
Um castelo de areia
Um menino
Uma menina.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Chegava o frio

Um homem que vi na rua
Mancava de uma perna
Fazia frio naquela tarde
Quanto mais mancava
O inverno chegava
Trazendo consigo
Um homem que mancava.

domingo, 20 de junho de 2010

Como aves de arribação

Sempre fora de lugar
Onde quer que esteja
Em nenhum lugar estará
Sem lugar certo para morar
Em nenhuma parte do mundo
Se sentirá como seu lugar
Por isso estrangeiro será
Onde quer que esteja
Seja lá
Seja cá
Por isso resolveu caminhar
Onde pudesse levar
Suas botinas surradas
De tanto andar
Por todos os caminhos
Alguns aquáticos
Outros terráqueos
Sem parada alguma
Como aves de arribação
Fugindo do frio que faz
Durante o inverno
Procurando pelos campos
Mais quentes de verão
Mas verão algum dura para
Sempre
E lá se vão novamente
Como aves de arribação
Não dura para sempre também
O amor que esquentou
O último verão
Quando vem o frio
Nenhum amor se mantém
Quente o suficiente
E lá se vão novamente
Como aves de arribação.

sábado, 19 de junho de 2010

Jogando bolinhas de gude

Bolinhas de gude
Estas eram as preferidas
De meu irmão.
Sozinho ele passava
Jogando
Bolinhas de gude.
Sem ninguém próximo
Passava as tardes
Jogando
Bolinhas de gude.
Que graça achava ele
Que graça haveria nas
Bolinhas de gude.
Mas isso não importava
Nem aquilo que eu achava
Porque ele passava
Jogando
Bolinhas de gude.
Assim passou a vida
Toda
Jogando
Bolinhas de gude
Sem se importar em crescer
Se resolvesse crescer
Ele pararia
Não jogaria mais
Bolinhas de gude.
Pararia de viver
Também
Para ele somente
Importava jogar
Bolinhas de gude.
Mas eu nada sabia
Das bolinhas de gude
Passei a vida toda
Sem jogar uma única partida
De bolinhas de gude.
Por isso não vivi
Como ele viveu.
Ah. Como invejo
Quem pode jogar
Bolinhas de gude.

Sorriso estranho

O estranho sorriso na cara
De Monalisa
Será de alegria
Será de tristeza disfarçada?
O sorriso que não existe mais
Em minha cara
Será de alegria disfarçada
Será de tristeza mesmo?

Sem espantar a tristeza

Esta frieza dos modos presentes
Não serve para ocultar a lava
Que derrama pelas bordas a chama
Que incendeia a alma perene
De uma dor sentida
De um mundo cada vez mais
Irreal e que clama por uma alegria
Que não mais acontece.
Por cima das pedras o limbo
Surgiu em sua antiguidade
Em sua brutal natureza
Mantém toda sua dureza
Cristalina e tristemente sentida
O sopro do vento pelo deserto
Traz algum encantamento
Nas patas dos camelos
Que continuam a mastigar
Uma grama que não mais existe.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Nada me tem, nem sou

Sou negro, sou pastor, nasci por aí
não tenho documento nem raça
nem casta, sou um cachorro preto
uma orelha cortada sem ponta
por baixo uma ferida aberta - sou pirata

a ponta branca de uma pata
a peste me ataca
deixando o pelo ralo
(o que me cura?)
moro num buraco de terra - sou vira-lata

estou vivo
e na trilha da montanha eu te acompanho
sou forte
sou pastor
sou um cão negro
sou sua sombra neste caminho sob o sol
nada mais me interessa
te acompanho
no caminho estreito
curvo e íngreme

me distancio e lá na frente
perto daquela nuvem
faço um cocô amarelo
sou cão
abano o rabo
deixo pendurada a língua no canto da boca

--

um espinho penetrando lento a carne
- uma dor me ataca no mais fundo do ouvido
balanço a cabeça violento
as orelhas batem - slept-slept
(só assim penso na cura)

me jogo no chão
solto ganidos
me arrasto com a cabeça
a se esconder no capim
até passar
até me deixar
até voltar

e então outra vez sou
- o cão negro
estou pronto
estou alerta

- sou todo atenção neste caminho -

e não precisa passar a mão na minha cabeça
afeto para mim é apenas a nossa presença - móvel
neste fim de terra e pedras

sou sombra e assim não vejo diferença
entre eu e você
quando você pensar em me acariciar
já sumi no caminho à sua volta
sou sombra de um ou de muitos
não importa, sou pastor, reuno
reuno a matilha nessa trilha de montanhas

assim sou feliz
sou cão
cão sem dono

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Tocador de blues

De onde será que vem
O som de blues?
Do outro lado de minha casa
Em que casa se ouve
O som de blues?
Que traz uma tristeza profunda
Uma beleza tristemente
Tocada numa guitarra
Uma saudade de uma terra
Que não existe mais
De uma mulher que se foi
Para não retornar mais
Nada mais deixou
Somente uma chave
De porta alguma
Sem fechadura.

Para que serve uma chave
Se nada mais há para se abrir
Para que serve o som de blues
Senão para tornar a tristeza
Uma condição das perdas
Numa vida vivida para se perder.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Numa casa da periferia

Por entre os fios
Elétricos pude ver
A lua minguante
Quase desaparecendo
Num barco chinês
Que navegava
No grande mar do céu
Abaixo estava uma casa
Quase em ruínas
Num bairro da periferia
Longe da vista
Longe da Avenida Paulista
Tendo por céu
O mesmo céu
Que naquela paisagem
Uma solidão imensa
Pairava sobre a casa
Acima a lua minguante...

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Na margem de cá

Caminhando com seu bordão
Lá vai Jizo acompanhado
De uma multidão de crianças
Todos o seguem
Beirando o grande rio
Um barqueiro vem chegando
Um passageiro vai passando
Sem nenhuma bagagem
Sem companhia alguma
Vai só para a outra margem
Deixando para trás
Amigos e inimigos
Mortos e vivos
Seu cachorro preferido
Na margem do lado de cá
Fazem as crianças castelos
De cascalhos molhados
Até que chegam os demônios
Uma turba deles armados
De ferros
E põem os castelos ao chão
Totalmente destruídos
Todos os sonhos
Brincadeiras e amores
Totalmente destruídos
Até que novamente chega
Jizo e começa a construir de novo
Um novo castelo de pedras
Até ser destruído de novo.

Antônio

Salve, Santo Antônio!
As chamas fundem-se,
dançando em frenesi.

domingo, 13 de junho de 2010

Tristão e Isolda

Uma intranqüila tristeza
Fere a pedra por inteira
Um ferreiro bate o ferro
Um pintor pinta o sete
Um palhaço chora e
O circo pega fogo
Queimando toda a impressão
De que era apenas ilusão
O amor de Tristão e Isolda.
Por amor não se morre
Tem que padecer
Na imensa solidão
Do amor que nunca se teve
E na solidão encontrar
A amizade de uma sombra
Companheira nestes tempos
De insolação amorosa.

O casarão que havia

Onde antes havia
Uma construção nada mais
Há agora do que destruição
De um dia para o outro
Tudo virou escombro
E toda a história que havia
Naquele local
Desapareceu num soprar
De um vento rasteiro.
Os amores que lá havia
Inscrito nas paredes rabiscadas
Encontros e também
Desencontros
Nada mais resta
Não resta mais a memória
Que baixou como poeira
De concreto armado
De ferro contorcido
Tudo se foi
Em instantes.
Como nunca tivesse havido
Nem fotografia se tirou
Dos tempos que havia
Uma velha construção.

Viver em desilusão

Os cachorros vadios vagueiam
Indiferentes ao frio que esfria também
Do que resta de amor inventado
No último verão.
Não há mais tempo para viver
Se viver é correr contra o tempo
Se viver é morrer a cada minuto
De insolação desiludida
De uma realidade cada vez mais
Irreal em sua aparência.

A frieza chega às pernas

Não é o frio das ruas
Que assusta
Nem o frio que sobe
Pelas pernas acima.
O que assusta é a frieza
Da total indiferença
Que anda pelas ruas
Sem se importar
Com o frio que assalta
Os corações de total frieza.
Como o frio incomoda
Meu corpo aquecido
Pelas blusas novas
E felpudas da ignorância.
Como detesto o calor
De minha blusa
Que mais frio produz
Em tempos que o frio
É apenas um detalhe
Dentre as prioridades!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Haiku

Viagem noturna
Criança tagarelando
Sono com memórias

Haiku

Nem aqui, nem lá
Viajante neste mundo
Busão devagar.

Haiku

Flor de sakura
Hanami no meu colchão
Mamilo rosado

Haiku

Haikus são nuvens
Escrevo para vocês
Aviões de papel

Haiku

Sábado no frio
Promessa de feijoada
Fome antecipada

Haiku

O sol é uma manga
Amarelo igual laranja
Gordo e picolé

Haiku

Paciente, aguardo...
Multidão à minha volta
Trem apita: vamos.

Haiku

Cinco-sete-cinco
Só quero três linhas
Caneta com fome

um dezenho

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O tempo parado

Nesta irreal realidade
Em que compartilhamos
Sentimentos comuns
A felicidade é um momento
Fugaz como as gotas de orvalho
Mas podem durar pela eternidade
Até que a água se desfaça em vapor
Como é longo o amor
Que desconhece o tempo passando
O tempo não passa
O tempo pára
Para os apaixonados
Que não fazem mais nada
Do que nada fazer
Enlouquecer de tanto
Sonhar por um momento!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Cantor de rua

Ao lado da velha sinagoga
Encontrava-se o louco cantor
Que cantava o dia inteiro
Como cigarra até desabar
De uma alegria disfarçada
Da própria condição humana.
Sua canção não era de tristeza
Mas triste era a situação
Que para não enlouquecer
Do excesso de realidade
Cantava seu mundo encantado.

Melancolia diante do mundo

Contudo, além do riso jovial e do respeito, ainda se acha nesse sentido contraditório uma outra inpressão, pois, ao representar o elo perdido entre as forças intelectuais e sensíveis, o ingênuo também desperta uma certa melancolia com o estado real em que se encontram os homens em sociedade.

SCHILLER, Poesia ingênua e sentimental, São Paulo: Iluminuras, 1991, p.21

Amor além dos muros

Foi quando de repente
O ônibus parou naquele ponto
Saltaram as mulheres
Algumas muito jovens
Carregando sacolas com produtos
Havia de tudo
Havia refrigerantes
Havia bolachas
Havia cigarros
Havia também embalado
Em celofane vermelho e rosa
Uma caixa de amor
Era o dia das visitas
Das mulheres e filhas
Dos presidiários
Daquele mundo isolado
Uma ilha cercada por muros
Por fuzis e olhares desafiadores
Daqueles que tinham ainda
O direito de receber
A visita de seus amores.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Canto das sereias

Por mares nunca navegados
Que poderá ser encontrado
Se nenhuma viagem aconteceu?
Sou Odisseu sendo encantado
Pelas sereias de canto solene
Devoradoras de homens
De suas almas mais profundas
Que a ninguém revela seus segredos
Seus medos mais insanos
O medo da solidão
Quem sabe o medo de perder a razão
Ao tomar da boca delas
O licor mais doce
Que leva ao arrependimento
De um dia ter visto
Ouvido a cantilena marítima
Do amor que a tudo arrebata
Breve amor
Que enfim mata
Todas as noites de verão.

Anjos Caídos

Ensaio fotográfico sobre evento de suspensão corporal durante a Virada Cultural de São Paulo, 2010. Clique em "Open publication" para ver em tela cheia. Fotos Bruno Mitih.

domingo, 6 de junho de 2010

Pigs

Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

BANDEIRA. Manuel, Libertinagem, Estrela da Manhã, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005, p.87.

Acima das nuvens

Quando a noite dorme
Também dorme o viaduto
Que abaixo dele dorme
Um casal de mendigos
Um cachorro também dorme
E assim a noite esquenta-se
Até que a manhã chegue
Trazendo os primeiros raios do sol.
A noite é longa
Para os que não querem acordar.
A noite é longa
Para os sonhadores e loucos
Que se entregam desvairadamente
Na vontade de navegar sobre as nuvens
Onde existe felicidade
A felicidade somente existe
Acima das nuvens de nossa existência
Acima bem acima de nossa realidade
Existe apenas em nossos sonhos.

A pele marcada

Nunca aprendi a empinar papagaios
Não subi aos céus para riscar o azul
Nem por isso fiquei triste
Pois aprendi geografia ao explorar
As formas generosas de Ana Maria
Com ela conheci o amor
Este irresponsável sentimento
Que machuca e causa sangramento
Sem que nos demos conta de nosso corpo
Cada vez mais marcado
Por unhas e dentes de um passado
Perdido no tempo.

Ao final do túnel

Sempre no mesmo ponto
Lá estava a velha na saída dos carros
Lá estava a velha no final do túnel
Nada pedia apenas sentada ficava
À espera dos carros que saíam
Às vezes paravam e davam algo
À velha que estava no final do túnel
Recebia com suas mãos crispadas
Um resto de pão
Um pouco de moedas
Um pouco de amor
De uma multidão desconhecida
Que por instantes viviam
A vida solitária
Da velha no final do túnel
Havia no final do túnel uma luz?
Não
Era apenas a velha
Que não incomodava
Que não atrapalhava
Nem vendia doces
Nem amendoim torrado
Nada vendia
Apenas a sua imagem
De velha no final do túnel
Ainda que fizesse frio
De lá ela não saía
Como uma estátua de mármore
Permanecia sentada e nada pedia
Mas quem a via dava
Qualquer coisa
Coisa alguma
Lá estava a velha no final do túnel.
Quem a viu jamais deixou de dar
Quem a viu nunca mais se esqueceu
De uma solidão profunda na profusão
De carros saindo ligeiro.

Um vento passageiro

O tempo passou
O tempo da escola passou
Os amigos passaram
Passaram passarinhos
Um gato preto passou
Repentino o vento passageiro
De passagem passou a vida
A vida inteira passada
Num piscar
Num bater de asas
De uma mariposa moribunda
Também passou ligeiro
Minha juventude sonhadora
Meus sonhos passaram
Nem sonhos tenho mais
Esqueci de viver
Só me resta o consolo
Desta dor nas costas
Que mais forte se torna
Nas tardes frias e angustiantes
Dos tempos do agora.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O amor de ontem

Uma possibilidade é sempre
Uma possibilidade de acontecer
Pode ser um encontro de olhos
Rápidos e fugazes
Como uma fumaça em desalinho
Rodopiando numa dança inventada
Exatamente naquele instante
Para nunca mais se repetir
Uma tacada de sorte
Para nunca mais se repetir
Um beijo dado no momento certo
Para nunca mais se repetir
Somente repetimos a esperança
De que o amor possa se repetir
E morremos de saudades
Dos amores passados
Que ficaram no passado
Mas continuam assombrando
E arranhando com suas unhas
De esmalte rubro e metálico
O presente que também passou.
Por isso a vida é um eterno
Passado passageiro e sonhado.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Os demônios friorentos

Nada mais triste do que
O frio que endurece os membros
Até mesmo os demônios sentem
O frio
Que nos viadutos procuram calor
Numa fogueira improvisada
Numa bebida improvisada
Mas não consegue conter
A onda de frio
O frio das pessoas
Que não moram nas ruas.
O frio das pessoas
Que não tem olhos
Para os demônios da rua.

Visão indiscreta

Pelas vilas da zona norte
Os varais estendem
As mais coloridas vestes
De cima e de baixo
Vermelhas e azuis
Sem nenhum pudor.
Toda e qualquer intimidade
Pode ser vista
Repartida pelos olhos
Curiosos do turista
Ocasional.

Abaixo do viaduto

Num ponto da esquina
Num ponto abaixo do viaduto
Um mendigo habita a rua
Um mendigo e o seu cão
Repartem o mesmo espaço
Espaço de jornal e papelão
Faça frio
Faça chuva
Faça ventania
Nunca se separam
Um mendigo e o seu cão.

Ausência fria

Por baixo da mesa meus
Pés procuram pelos seus
Mas nada encontram
Senão uma ausência
De qualquer calor.

Escrevo porque sou um desesperado...

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui.

LISPECTOR. Clarice, A hora da estrela, Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1993, p.32