quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A boneca sem braços

Deram-me de presente
envolta em papel celofane
uma boneca japonesa.
De madeira era ela.
Sem braços era ela.
Sem pernas era ela.
Chamava-se
Kokeshi ningyo.

Ela era dura
não servia para brincar
com as meninas.
Ela era sem braços
não servia para abraçar.
Sem pernas
não andava
mas estava sempre em pé.
Ereta ela ficava
sorrindo para todos
sobre um armário carcomido
pelo cupim.

Durante o tempo que ficou
no mesmo lugar
e o tempo passou
passou em revoada
as andorinhas de verão
e branca ficou a barba.
Mas aquela boneca
nunca perdeu a pose
nunca realmente envelheceu.

- Que raiva sinto disso!


Ao cavoucar fundo

Alguém em algum lugar
que ouço com vagar
o som de um instrumento
a perfurar a terra.
Quanto mais fundo fica
uma noite profunda fica
e quem me visita
são os cavalinhos do passado
montados pelos amigos
que se foram um dia.

Se foram e me deixaram só
com seus castelos de areia
a se desfazerem ao menor movimento
de uma onda rasteira.
Depois que a onda se foi
nenhum sinal apareceu
nem restaram as ruínas da destruição
como nada tivesse um dia
realmente existido.

Sem olhar para trás
cujos passos apagados
não retornam mais
o horizonte adiante
é largo demais
para uma existência rala
sem consistência
senão apenas
pelo aroma da primavera
que novamente encanta
os pés que se arrastam
errantes
em direção qualquer.

Tempos de friagem

Ao som que de fora invade a sala
a umidade visita-me desoladamente
enquanto as veias verdes das pernas
ressentem-se.

Por um momento em minhas orelhas
toda a água escorre em cachoeira
trazendo um frescor
em gotículas glaciais.

E assim nesta espera constante
o mundo para por instantes
e demorado se torna os movimentos
desta mão que se solta e levanta
e acalenta uma sombra que se desfaz.

Pelas frestas da janela uma luz opaca
mal clareia o canto em que nasço e morro
a cada instante
e cada vez mais
mais distante fico daquilo que pensei
saber um dia.

Nem mais reconheço mais a face
estranha que num espelho envelhecido
perdeu todo o encanto.
Desencantado procuro pela casa
um sinal que seja suficientemente claro
para que eu seja
mas acabo desenganado
pois nada existe senão
uma camada de poeira
largada acima da cama fria.


domingo, 28 de agosto de 2011

Levado pelo vento errante

Ainda que procuremos fugir
Não fugimos das encruzilhadas
De nossas vidas
Que inevitavelmente
Há de acontecer
Sem nenhum desejo
Que assim pudesse ser
Como que a vida pudesse
Ser planejada?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Para deixar lembranças

Foi numa velha árvore
Que escreveu o seu nome
A árvore cresceu
E o tempo passou
E tudo foi esquecido

Foi numa velha árvore
Que escreveu seu nome
Veio uma tempestade
E derrubou
E arrancou as raízes

Foi numa velha árvore
Que escreveu seu nome
Naquele momento
Era o melhor nome
Que ainda causa
Arrebatamento

Foi numa velha árvore
Que escreveu seu nome
Só pela emoção
De gravar na madeira verde
A ponta de um canivete
Como uma tatuagem

Foi numa velha árvore...

Viver para esquecer

Em vão procurei por um amor
Não sabia contudo
Quanto mais procurava
Mais distante ficava
Assim parei de procurar
Esqueci-me do que procurava
E a procura esqueceu-se de mim
Até de mim esqueci
Enfim esqueci do próprio esquecimento
Nem ao menos soube-se depois
Quem procurava quem
Quem esquecia de quem
Nada havia
Nem lembranças
Nem esquecimento
Nem tristezas
Nem alegria
Apenas havia
Um grande silêncio
Que também foi
Esquecido

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

As lágrimas derramadas

Que valem as lágrimas
Se apenas valem
Um pouco
De potássio
Rejeitado pelos olhos?

Foi assim que ouvi

Alguém assim disse
Numa canção antiga
Que a felicidade só existe
Bem acima
Acima das nuvens.

Alguém assim disse
Numa canção antiga
Que o amor só existe
Bem abaixo
Abaixo das nuvens.

Não se pode ter
As duas coisas...
Alguém assim disse.

Alguém seguia um cego

Era um cego que seguia
Uma bengala
Arrastada ela seguia
Um cego
Que desconhecia
Onde ia
Se ia para algum lugar
Não se sabia.
Apenas seguia
Uma bengala
Era um cego que seguia.

Pouso Frio

noite profunda em Pouso Frio
enquanto a iluminação não vem
uma vela acesa para Deus,
outra para o diabo

***

meio-dia
a total ausência de pássaros
proclama o dharma


***

meia noite
o rugido da água
o riacho enxerga no escuro

***

em meio ao chiado do rádio
tudo parado nas marginais
as montanhas não param

***

toda madrugada
hora e meia de vigília
algazarra dos morcegos

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Negra estátua


Aquela imagem enegrecida do tempo
Exposta aos escapes automotivos
De pé na praça, pela eternidade
Olhando o mesmo banco por meia década
Deixa as pessoas irem e virem
Ao sabor do vento
Sem pará-las, questioná-las ou chama-las
Numa retidão sem igual
Sob um ninho em sua cabeça
Que comporta a mente mais serena que já vi

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Entre Sol e sombra


Caminho pela calçada
E torço para que haja mais lugares de Sol
Do que lugares de sombra
Assim posso esquentar meu sangue
Durante as passadas
Largas, imprecisas e cambaleantes
Antes de entrar para o ar condicionado
Que seca meus olhos

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Mendigo e a Virgem Maria

Ali estava
Prostrado diante da santa imagem da Virgem Maria
Amarrado aos trapos
Pés descalços e sujos
Conversava apoiado naquela carroça
Com um monte de papelão
Que pegou não sei de onde
Conversava com a estátua
Numa ou noutra realidade
não sabia qual
Que de certo não a mesma que a minha
Declamando poesias e amores hereges
Esperando uma resposta
Que veio somente como um eterno sorriso