sexta-feira, 30 de abril de 2010

Oração aos vegetais

Há muito minha misericordiosa
Sapiência humana e animal deixou
De rapinar gêneros orgânicos
Possuidores de patas e caudas
Barbatanas e asas
Pois sentiam dor
Frio e pavor
Sentiam medo
Não desejavam ser predados
Mas a predação continuou
Desta vez com os vegetais
Quem falou que os animais
Não sentem dor
Quem falou que os vegetais
Não sentem dor
Cortados e trucidados
Pelo fio dos metais
Ainda verdes
Ainda vermelhos
Como rabanetes
Ainda roxos
Como repolhos
A dor dos vegetais
É silenciosa
Angústia sentida
Que não chora
Em sua mudez
Uma mulher muda
Trucidada a golpes
De facão
De machadinho
De triturador elétrico
Para virar suco.
Só o homem pensa
Que vegetal não sofre
Pois não grita a sua dor
Pois nem voz tem.
Sem remorso algum
Sem culpa nenhuma
O vegetal é mastigado
Saborosamente pelo homem
Que defende os animais
De quatro pernas
Pernas para o ar
Mas continua comendo
Vegetais.
Se aprendêssemos
Com os vegetais nos alimentaríamos
Apenas de sais minerais
Da terra profunda
Apenas de gás carbônico
Do céu profundo
Mas não passamos de
Selvagens predando
Vidas vegetais
E outras...

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Dodó e Zezé

Música de Tom Zé

- E por que é que a gente tem que ser marginal ou cidadão?
Diga, Zezé.
- É pra ter a ilusão de que pode escolher, viu, Dodó?
- E por que é que a gente tem que ter um medo danado
de tudo na vida? Diga, Zezé.
- É pra aprender que o medo é o nosso melhor conselheiro,
viu, Dodó?
- Sorrisos, creme dental e tudo. E por que é que a felicidade
anda me bombardeando? Diga, Zezé.
- Anda o que, Dodó?
- Anda me bombardeando.
- Ah! É pra provar que ninguém mais tem o direito de ser infeliz,
viu, Dodó?
- E por que é que um Zé qualquer de vez em quando tem que dar sete
sopapos na mulher? Diga, Zezé.
- Ah! Isso é pra no outro dia de manhã cedinho vender muito jornal,
viu, Dodó?
- E por que é, e por que é, e por que é, e por que é? Diga, Zezé.
- É porque porque, porque porque, porque porque, porque porque,
viu, Dodó?

terça-feira, 27 de abril de 2010

Sensation

Par les soirs bleus d’eté, j’irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue:
Rêveur, j’en sentirai la faîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner tête nue.

Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l’amour infini me montera dans l’âme,
Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - heureux comme avec une femme.

Arthur Rimbaud

???

Blablablablabla:
Blablablablabla,
Blablablablabla,
Blablablablabla

Blablablablabla
Blablablablabla;
Blablablablabla
Blablablablabla!!

Blablablablabla
Blablablablabla
Blablablablabla
Blablablablabla

Blablablablabla:
Blablablablabla?
Blablablablabla?
Blablablablabla!

Blablablablabla
Blablablablabla
Blablablablabla
Blablablablabla...

Guerra de crianças

Naquela vila do interior havia
Nos tempos que usava calça curta
Uma guerra de crianças
De um lado havia os azuis
De outro havia os verdes
Cada grupo defendia suas idéias
Cada grupo defendia seus brinquedos
Cada um achava que o seu era
Infinitamente mais belo
Infinitamente mais justo
Por isso lutavam por suas
Causas infantis
Incrivelmente infantis
Incrivelmente egoístas
Os azuis defendiam o céu
Os verdes defendiam as matas
Os azuis achavam que o céu
Superava as matas
Os verdes achavam que as matas
Superavam o céu
Por longas noites brigaram
E o tempo passou
Eles passaram
Mas seus filhos e seus netos
Continuaram a tradição
Cada um defendendo aquilo
Que achavam certo
De um lado os azuis
De outro os verdes
Até que um foi alvejado
Não se sabe se era um azul
Não se sabe se era um verde
Era vermelho o líquido que
Correu pelo chão
Mas cada um continuou
Defendendo suas cores
Apaixonadamente defendiam
Passou a paixão
Não defenderam mais
Passaram então a atacar
Até que o próximo fosse
Atingido
Pela intolerância de suas
Propostas.

Os azuis defendiam o céu
Os verdes defendiam as matas

Surpresa

Abre teus olhos de amêndoa, amor
e contempla esta flor que não é mais botão.
Cora tua face com a cor da pimenta
e não se demore,
aproxima-te,
experimenta.

Para as crianças

Ouça esta história menino
sabe, as nossas orelhas nunca param de crescer
veja as orelhas do vovô: são enormes, não são?!
Isto é assim desde que o tempo era novo
quanto mais vamos ficando velhinhos, mais precisamos ouvir
ouvir com paciência para ver o coração dos outros
tendo o nosso coração sereno — há sempre novidades (sussurrando
Veja aquela estátua de Buda, que orelhas enormes!!! (e gargalhou...
O que é sereno? — perguntou o menino

segunda-feira, 26 de abril de 2010

A maçã sem amor

Uma maçã redonda e bela
Mais bela é a maçã de seu rosto
Uma maçã que ofereço a ela
É a maçã de seu rosto que quero.
Se me desse não comeria
Guardaria somente para mim
Quero seu coração por inteiro
Quero a lua desta noite
Quero o pântano e o deserto
Para morrer um pouco
Todo meu desencantamento
Perdi a inocência de outrora
Fiquei mais cínico
Nada mais quero

Poema de finados

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho;
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.

BANDEIRA. Manuel, Libertinagem & Estrela da Manhã, RJ, Nova Fronteira, 2000

domingo, 25 de abril de 2010

Levantando bandeiras

Um movimento foi inventado
Criou-se uma bandeira
Uma causa foi criada
Uma criada também criou
O sindicato das criadas
Que defendia interesses comuns
Das criadas malcriadas
As bem criadas também criaram
Uma criação de pintos de corte
Houve protesto contra o corte
Dos pintos de corte
Houve protesto contra o próprio pinto
Em nome dos bons costumes
Das famílias bem constituídas
Da tradição e da propriedade
Das instituições de classe
Que nada mais criou
Se criasse seria mal falado
Por isso criou também
O movimento dos mal falados
Que falavam de todo mundo
De todos os outros movimentos
Criados e inventados sem criatividade
Alguma
Alguns bizarros
Como o movimento em defesa dos gnomos
“libertem os anões de jardim era o lema”
Criou-se o Partido dos Sapateiros sem Causa
Criou-se o Partido dos Sapateiros com Causa
Sem causa própria aqueles que não tinham causa
Alguma
Defenderam o direito dos cachorros vira-latas
Que poderiam vagar pela cidade
Sem serem incomodados.

Vendedora de água

Havia uma mulher que
Vendia água na beira do rio
Não havia quem comprava
Não havia quem comprava

Havia uma mulher que
Vendia água na beira do rio
Um homem se interessou
Um homem se interessou

Havia uma mulher que
Vendia água na beira do rio
Um homem comprou
Um homem comprou

Havia uma mulher que
Vendia água na beira do rio
Quem será o próximo
Quem será o próximo

sábado, 24 de abril de 2010

Protesto verde

As plantas da minha casa
Não querem ser devoradas
Como que as plantas não sentissem
Nada nenhuma dor aparente
A ser arrancada da terra fofa.
As plantas da minha casa
Querem ouvir música boa
E alegres ficam
Numa platéia cheia de
Margaridas e flor de macieira.
Quem disse que as plantas
São insensíveis?
Somente uma planta entende outra
Somente um animal entende outro
Por isso defendemos os animais
Que sente dor e sofre
Mas
Quem disse que as plantas
São insensíveis?
Não foi uma planta
Foi um animal!

Ninguém cabe em si

Sim, as coisas estão no seu lugar
tão perfeitamente que não há como entender
As coisas óbvias são a sabedoria
tão desfocada para os míopes contumazes

Se você quer melhorar as coisas
começa pelo centro do mundo (você)
Mas não diga a ninguém
saiba, isto transborda.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Alegria da diferença

Não apenas molha
A chuva que cai
Lentamente sobre o rosto
Lentamente sobre todo o corpo
Refrescando os ânimos exaltados
De nossas emoções mais profundas
De dizer o que não diz
De pensar o que não pensa
De fazer o que não se faz
Assim podemos contar figurinhas
Colecionadas por toda a vida
Sem importância alguma
Se importância tivesse
Nada colecionaria
Sem serventia alguma
Desta forma podemos começar
A viver de maneira completamente
Diferente
Como que a diferença fosse
A medida certa das conversações
Que podem falar a respeito
De suas diferenças
Caleidoscópicas e instáveis
De toda concordância
Concordância não é importante
Discordância é a liberdade
De discordar amigavelmente.

Não estou...

“Não estou além de meu karma: os atos que cometi.
Ainda irei cair doente, envelhecer, morrer e deixar meus amigos.”
Pense assim de novo e de novo e, com esse antídoto, evite toda arrogância.

Nagarjuna
(Índia, séc. II)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Por interesse próprio

Cansei-me dos discursos políticos
Em defesa própria
Dos interesses imediatos
Dos grupos interessados.
Sejam da construção
Da transmutação
E da religião
Seja também do interesse
Do síndico do prédio vizinho
Do sindicato de classe patronal
Também nacional e internacional
Do interesse que apenas visa
Enriquecimento próprio
Empobrecimento das faculdades
Um tanto quanto miseráveis
Por interessar por interesses
Que não merecem interesse
Algum.
Sem interesses podemos
Falar de outros assuntos
Incrivelmente interessantes.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Caminhos do bairro

Pelos meandros deste bairro
Não encontrei o que queria
Até me esqueci que procurava
Enquanto o cheiro de macarronada
Percorria alegremente as ruas
De minha querida Bela Vista.
Numa mesa posta a toalha
Verde e branca bem passada
Não faltava vinho e pão
Não faltava queijo ralado.
Padaria é o que havia
Vendedora de olhos claros
Que lançava para todo lado
Um olhar que desmanchava
Todo ressentimento.

O guardador de rebanhos

XVIII

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes disso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

CAEIRO. Alberto. Poemas Completos de

O homem do saco

De minha infância
Ainda me lembro
Do homem do saco
Carregava nele as crianças
Para serem devoradas
Nas noites de lua cheia.
Por pouco não fui devorado
Pelo homem do saco
Mas devorou ele o meu gato
Mais tarde devorou os meus sonhos
De ser alguém nesta vida vazia
Comprar um fusca de segunda mão
Ser balconista na feira-livre
Fui me interessar justamente
Por tudo aquilo que não devia
Fui me interessar por poesia.
Fuji uma vez da poesia
Fui fazer faculdade de economia
Fui escrever história da vida
O tempo passou
A tristeza passou
Passou o filme mudo
E o filme falado e dublado
O fogo do amor passional
Passou.
Nada mais restou nesta vida
Somente a poesia.
Somente ela para alegrar
Esta vida tão chateada.

Bocas seladas

Toda vez que abrimos a boca
Corre-se um risco enorme
De falar aquilo que se pensa
Como que pensar fosse a medida
Certa e certeira de uma flecha
Ligeira que nunca se desvia
De seu alvo certeiro.
Toda vez que abrimos a boca
Corre-se um risco enorme
De falar aquilo que não pensa
Mas mesmo assim fala tudo aquilo
Que não deveria falar
Sem medir conseqüência.
Melhor é se calar
E calando somente os olhos
Revelam a sinceridade
De todo o silêncio
Isento de palavras
Pois as palavras podem mentir.
Alguns mentem para viver
Outros ainda para morrer
E os mortos não mentem jamais
Nem sentem ódio
Nem amam mais
Não têm ciúmes
Silenciosamente dormem.

O monge




Bateu à porta do templo
Sem nada, andarilho, perdido.
'Entre, seja bem vindo'
Entrou, sentou,
Comeu, sentou,
Trabalhou, sentou
Limpou, sentou,
Leu, sentou,
Rezou, sentou,
Costurou, costurou,
Costurou, sentou,
E sentado, calou.
No daike, taiko,
E o fumo do incenso chamou...
Pronto seu manto, voltou a ser monge
Monge, já há muito ordenado
De volta a seu templo, chamado.
Mendicante, tomou a estrada,
Saiu como entrou: sem nada
Deixou no templo o hashi,
E os chinelos na escada...


(dedico aos meus irmãos do Bushinji)

Primeira comunhão primeira condenação

Aqueles meninos de camisa branca
Impecavelmente brancas eram suas almas
Com suas calças azuis marinho
Recebendo a primeira comunhão.
Menos um.
Sua camisa também branca
Mas condenado ao fogo do inferno
Deixou de contar o único pecado
Por vergonha
Talvez
Simplesmente deixou de contar
No confessionário.
Levantou a saia de Mariazinha
Nunca se arrependeu disso
Ainda que fosse condenado
Queimado e estorricado
Morto e cruxificado
Por tudo neste mundo
Mariazinha era o seu pecado.

Os três amores do menino

Os amores que já tive
Não tenho mais.
Onde foi parar Raimunda
A filha da empregada
Com ela aprendi as primeiras
Lições de anatomia
Num caderno de ciências
Numa aula de geografia.
Onde foi parar Célia Regina
Que trabalhava numa granja
De galinhas depiladas
Mergulhadas em fogo brando.
Onde foi parar Maria Rosa
Que batia pernas pela rua
Subindo e descendo ladeiras
Da cidade de minha infância.
Onde foi parar o menino
Que a tudo isso via
O menino se foi e homem formado
Achou uma grande bobagem
Tudo isso.
Mas o menino ainda existe
Nas lembranças de
Raimunda
Célia Regina e
Maria Rosa.
Enquanto elas existirem
O menino continua existindo.
O homem esqueceu
Não o menino!

A imagem vazia

Nunca me assustei
Um dia me contaram que
Nada existia na cabeça
Da imagem de Kannon
Vazia ela existia para a eternidade
Por imensa compaixão vazia
Sem piedade alguma
Sem tristeza e choro
Sem comiseração
Sem desejo de salvar ninguém
Sem desejo algum
Mas suas orelhas grandes
A tudo ouve
Mas seus olhos miúdos
A tudo vê
Estronda um trovão
E segue-se uma tempestade
Nem toda água enche seu coração
Seu coração também é vazio
Por isso oramos para ela
Com o coração igualmente vazio
Seu sorriso é contagiante
Vazio e contagiante
Somos a própria imagem de Kannon
Somos Kannon
Sem ser imagem
Apenas compaixão
Totalmente vazio.

Desaparecendo no tempo

Mergulho no silêncio de minha’lma
Sem saber se tenho uma
Se tenho uma alma?
Se tenho um silêncio?
Mas no silêncio deste momento
Nenhum pensamento me visita
Calmo no silêncio
Silencio perfeitamente
Que penso que sou silêncio
Nem penso mais e o silêncio
Também desaparece
Nada mais resta do que
Esta fresca manhã de outono
Desaparecer completamente
Ser a manhã de outono
Que também desaparece.

domingo, 18 de abril de 2010

Oração no saco de Mangaratiba

Nossa Senhora me dê paciência
Para estes mares para esta vida!
Me dê paciência pra que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!...

1926

BANDEIRA. Manuel. Libertinagem, Estrela da Manhã. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2005. p.50

O que restou da Augusta

Augusta era o nome dela
Augusta virou nome de rua
Que à noite logo se transforma
As transformistas da noite
Em roupas de couro preto
Expostas em vitrines opacas
Augusta era o nome dela
Augusta virou nome de rua
Mas antes era nome de mulher
Que freqüentava os cinemas
Lá daquela rua mesma
Que freqüentava os bares
Lá daquela rua mesma
Também a chapelaria
Os bares em que tomavam
Água tônica com guaraná
Os boêmios tomavam por lá
Os primeiros goles da noite
Os últimos da madrugada
Augusta virou noite
Augusta virou todas as mulheres
Que esperam que alguém
Envie uma carta de amor
Não se sabe de onde
Pode ser de onde for
Pode ser da presidência
Pode ser também da cadeia
Pois todos somos prisioneiros
De nossa própria vaidade
Prisioneiro dos sonhos
Esperança que nunca morre.
Augusta era o nome dela...

A bailarina no fio da vida

Por um fio elétrico de alta tensão
Sem pestanejar caminhava a bailarina
Com os pés enfiados em sapatilhas
Deslizava numa dança de plumas
Que flutuava ao sabor da ventania
Todo dia lá estava ela a desfilar
Seu corpo de bailarina
Leve era ela que balançava
Para a platéia em dia de sol
Em dia de chuva ela não molhava
Seus pés que deslizava em sapatilhas
Não deixava de desfilar no fio da vida
Desprezando todo perigo
Se perigo realmente havia
Por desfilar num fio da vida
Um fio elétrico de alta tensão
Mas a bailarina nunca deixou
Um dia sequer de desfilar
Diante da multidão que pedia mais
Desfilava toda a sua graça
Delicada era ela seus pés sua cintura fina
Ela era bailarina.

Se um dia ela parasse de desfilar
O que seria da vida
Desta vida sem graça alguma
Se um dia ela parasse de desfilar
Ninguém mais olharia para cima
Terminariam os torcicolos
Mas também os sonhos de todos nós
Sonho de ser bailarina
E poder desfilar num fio apenas
Fio elétrico de alta tensão
Fio da vida
Fio que sustenta toda a minha vida
Me faz acreditar que a esperança
Ainda não caiu num balanço maior
Numa rajada de vento atroz.

Correspondencias

Baudelaire

A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Na praça da República

Aceita um pão? disse,
com mortadela.
Ele: com um sarrafo ou
uma adaga na mão -
É caridade? Caridade?
Dinheiro? Dinheiro?
- o rosto sumindo denso
por trás de fios negros -
Ah, comida!? Comida - exclamou!
comida você dá para o seu cachorro...
E sem esperar,
fui maldito,
realmente dito,
o reverso,
autêntico
mal.

domingo, 11 de abril de 2010

Fingimos para ser aceito

Por uma questão de bom senso
Por uma questão de bons princípios
Aprendemos a mentir
Mentimos descaradamente
Entre amigos e inimigos (independentemente)
Mostrando uma cara falseada
Que evita olhar nos olhos
Pois os olhos revelam segredos
Que mentira alguma possa ocultar
Por trás das cortinas do teatro.
Mentimos ao negar nossos sentimentos
Alguns patéticos outros nem tanto
Fingimos que somos outra coisa
Que queremos ser outra coisa
Negando o que somos agora
Somos tudo aquilo que não somos
Somos a negação do que representamos
Somos a morte e a vida
Somos o amor e a decepção.

Vizinha muda

Quem realmente habita o lado
Será uma moça muda
Que o tempo todo assiste televisão
Que ausente de namorado
Espera em sua mesa posta
Toda noite depois da novela
O jantar que jamais será servido
Mesmo assim repete a rotina
Não uma rotina qualquer que seja
Mas esperança que nunca acaba
Esperança de que ela fale comigo
E podemos ser inclusive amigos
E jogar xadrez
E discutir filatelia
Tirar fotografias
Num condomínio que ninguém
Mais fala.

E a noite cai devagar cai

Quando a noite escurece
Também escurece o coração
Daquele que sentado espera
Ao relento a noite escurecer
Assim poderá se isolar em seu mundo
Particular e restrito de uma calçada úmida
Repartindo a geografia com as lacraias
Que ao seu lado aquecem corpos doloridos
Num único cobertor imundo e bolorento
Sem se importar com o resto que o circunda
Anônimos como eu que percorre caminhos
Com destino certo
Prisioneiro do destino.

Mas aquele não
Que anda na contramão totalmente livre
Ainda que não tenha teto e parede
Que servem apenas para isolar.

Mas aquele não
O céu inteiro é o teto que necessita
A cama na rua é macia e fria
Enregela seus ossos já com artrite
Mas não está feliz
Nem infeliz talvez indiferente
Com a direção dos ventos.

Vagabundo

Entre ficar em casa arrumando as coisas
e sair por aí à toa sem pretender organizar seja o que for
Preferi a segunda opção. As coisa que esperem
pois não esperam, não estão nem aí
e eu já nem estou aqui.

Etérea fumaça

Não fumo.
Fumaça,
Que da brasa é o sumo,
Do cigarro ou charuto.
Pelo olhar, grito insano
Fétido vapor antiético
Saliva e odor decrépito
Incensário patético,
Espantalho do amor e do bom sexo.
É "adereço" da finesse,
Julgado como sexy...


E garanto:
Nada mais eloquente,
refinado, classudo, atraente,
que em mi'a boca repousando encostado,
Meu lendário cachimbo apagado.

sábado, 10 de abril de 2010

Uma vida efêmera

Ainda que segredos possam ser
Guardados em baús empoeirados
Que enterramos nos porões profundos
De uma memória desprezada até o esquecimento
Como fosse possível destruir as casas
De um passado longínquo em que habitamos.
Se ainda fosse possível
Das ruínas surgiriam os fantasmas
Exigindo reconhecimento
Pois nem os fantasmas podem ser esquecidos
Nem a tristeza da separação
Quem viveu calará por um momento
Quem não viveu nada terá para ser lembrado
Somente os amores não realizados merecem
Consideração.
Pois continuam existindo como sonho
Daqueles puros de coração.
Pois a vida não passa de um sonho
Vivido com intensidade
Como tudo nela fosse verdade.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Minha bandeira é protestar

Se vida alguma tem sentido
Levantem bandeiras de protesto
Protestem contra o saco de plástico
Também contra a pilha de rádio
As pilhas do telefone celular
Contra o aerosol e também o sonrisal
Protestem contra os comedores de carne
Humana e desumana
Contra o sapato de couro
Contra o sapo e a rã
Contra quem atirou o pau no gato
Contra também quem come verdura
Pois verdura também sofre
Cortado salgado refogado na panela
Protestem afinal
Contra os próprios protestantes
Cuja função é protestar

Pelos caminhos tortos

Que sorte me lançará
A leitura nas folhas de chá.
Minha vida não foi muito certa
Aliás foi incerta desde que nasci
Inquieto diante às incertezas de meu futuro
Não estudei engenharia
Nunca me interessei por raiz quadrada
Esqueci a regra três
Direito não serviria com a vida pretendida
Nem sabia para quê servia viver
Se viver era dar sentido
Sentido algum encontrei na vida vivida.
Por não ter sentido algum
Senti-me livre para viver alegremente
Nas asas do sonho em que alimento
Os amores recusados
Pelo endurecimento das emoções.
Somente no silêncio a fala surge
Com clareza maior
O sol se rompendo na manhã
No horizonte ainda negro e soturno.
Fecha-se os olhos para ver!

Que sorte me lançará
A leitura nas folhas de chá.

Vida passageira numa cadeira de balanço

Da área de sua casa
Numa cadeira de balanço
Uma velha com um gato no colo
Balança e vê a via passar.
O gato também balança
E acaba por adormecer
Dormem no mesmo balanço
A velha que descansa
E o gato que dorme
A velha que dorme
O gato que descansa
E a vida passa
Passageira ela passa
Num instante
Breve existência que passa
Ligeiro passa
Passa na rua o vendedor de pamonha
Pamonha de Piracicaba
A primavera passa
A juventude passageira
Do rock da pesada que passa
Até mesmo Carlos Drummond e Andrade
Passou deixando atrás de si
Um rastro de versos livres
Totalmente livres
Que passam a minha vida
Em reverso.

Em trânsito

menina distraída
no vagão do metrô
olhe para cá
que eu finjo que é pra mim

*

vinho da cuca
Led Zeppelin no fone de ouvido
despenco ladeira abaixo
o anjo da guarda agarrado
na garupa da bicicleta


*

dias de chuvarada
finalmentge o céu abriu
da chegada do outono
restou o nariz escorrendo

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Quando a noite caia

Pelas ruas da Aurora
Lá no centro da cidade
Que outrora havia pastelarias
De chineses que por aqui chegaram
Trazendo em bagagens muambas de terra longínqua
Não se sabe para onde foram
Sumiram com as boas moças de saia curta
Que exibiam formas parabólicas
De um quadro surrealista de um artista desaparecido
Havia alegria nas portas dos cinemas de bilheteria barata
Exibindo nas telas mofadas belezas da indústria nacional
Nada disso existe mais
Nem mesmo uma curiosidade por espiar
Pelo canto do olho arrepiado
Um pecado da noite que se vai
Mas passado um tempo demorado
Quando retorno à calçada do passado
Nenhuma porta se abre mais
Para um espetáculo interessante
Das bailarinas fingindo meninas
Despidas de toda vergonha com arte e mesura
Vênus platinada que pensava ser
Artista de Hollywood.
Uma inocência havia na cara estampada
Das moças de má vida.
Das moças de família.
Nada disso existe mais
Na Aurora de nossa vida.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Paulistano

Andam em meu sangue:
as putas da Luz
as crianças miseráveis dos Céus
os mendigos de papelão do Paraíso
as bichas carentes da Consolação
os gatunos da República
os pastores engravatados da Sé
e os bêbados equilibristas da Liberdade.
Foi ao derramar sangue na rua que percebi isto
Sangue que saía de dentro deste corpo
e manchava a calçada encardida
Foi aí que percebi.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Coxinha


Lanchonete em São Paulo.

Foto: Bruno Mitih

Um pedido pequeno

Logo surgiu adiante
Sua palma suja e grande pedia
Um auxílio menor que fosse
Antes de atendê-lo pedi primeiro:
Varra o chão e deposite as folhas
Num cesto de lixo.
Não entendeu
Insistiu com braço estendido
Um auxílio menor que fosse
Insisti em meu pedido primeiro:
Cate as folhas primeiro
Mas ele
Não entendeu
Foi-se zangado e praguejou
Pedia apenas
Um auxílio menor que fosse.
Mas o meu pedido
Era grande demais!

A bela e os outros

Olhar altivo olha
Por cima do muro
Enquanto a multidão se dispersa
Depois da chuva
Quem olha não vê ninguém
Pois ninguém merece ser visto
Além daquilo que lhe é útil.
Inútil os outros
Que vivem a correr
De um ponto para outro
Para lugar algum.
Sempre no mesmo ponto
Abaixo do mesmo viaduto
Arruma a cama de papelão
Sua companhia:
Um velho doente
Um cachorro com sarnas.
Um espelho para ver o rosto
E enaltecer sua vaidade
Mulher mais bela não há
Do que ela própria.

Sonhos desfeitos

Que dizem as paredes desta metrópole
Em cujas fissuras esconde-se uma alma
Desiludida talvez dos sonhos amarelados
Que de velho ficaram desbotados
Ficaram mal falados na língua alheia.
Mas que me importa o que digam
Digam que esquecerei em instantes
A vergonha de não ter realizado
Um sonho passado.
Não fui pianista
Deixei de ser anatomista
Queria ser artista de circo
Fui artista da vida
E representei tão bem a comédia humana
Que de tragédia nada tinha
Ninguém aplaudiu
Todos riram e pediram mais
Foi demais para a alma pequena
Continuei a representar papeis secundários
Pensando ser maioral
Cujo talento maior
Era não ter talento para
Ator principal.

Ao frio da tarde

O que me resta naquela cidade
Em que nem as ruas me reconhecem
Mais
Nem mesmo um rosto que seja
Familiar
Em cada esquina que passo
Mais estranho sinto
Um calafrio que me percorre
A espinha
De uma maleita nunca sentida
Que na alma vai adoecendo
Numa febre fria
Numa brisa fria
Que traz consigo os fantasmas
Envelhecidos em tonéis de carvalho
Da uva pisoteada
Que virou vinagre.
Se alguém me reconhecesse
Nem assunto teria
Numa conversa arredia
Preferia que não acontecesse
Pois o frio não apenas congelou
As faces endurecidas
Mas igualmente o coração.
Que de duro esfriou
A chuva deste momento
Esfria esfria.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Silêncio dos olhos

Nenhuma palavra a mais
E quando o silêncio chegar
Nada mais restará do que
O que os olhos não podem
Mais esconder senão
Um olhar revelador
Que não deve ser revelado
E assim somente ficarão
Os olhos parados
Como nada dissessem
Tudo dissessem.

domingo, 4 de abril de 2010

O arco e o violoncelo

Toda vez que passava naquela rua
Lá de dentro daquela casa
Lá de fora se ouvia
A fina melodia.
Não sabia que lá dentro
Havia uma mulher que
Envolvia em suas coxas
O corpo anguloso de um
Violoncelo.
Com seu arco tirava
Das cordas do violoncelo
A fina melodia
Toda vez que passava naquela rua...
Apaixonara-se pela música
Que tanto tocava seu coração
Apaixonara-se também pelo tocador
Que só poderia ser mulher
Tamanho encantamento sentia
Até o dia que não mais ouviu
Música alguma
Nunca mais quis saber de passar
Naquela rua.

O que fazem os poetas com as palavras

A poesia é um fato inelutável. Dizem os antropólogos que não há um só grupo étnico desprovido de poesia, mesmo nas sociedades denominadas “primitivas”. Trata-se, pois, dum fenômeno universal, exatamente como a linguagem. Em certos grupos étnicos apenas existe, a par da linguagem quotidiana, a linguagem poética; desconhecem-se, porém, sociedades em que, além da linguagem corrente, se cultive exclusivamente a prosa artística. Esta é uma superestrutura, algo de já mais complicado, a meio-caminho entre a poesia, que é um dos polos, e a linguagem de todos os dias, que é o outro. Note-se, por outro lado, que em certas sociedades só existe poesia sob a forma de poesia cantada: é o sincretismo primitivo da palavra poética e da música.

JAKOBSON. Roman. Colóquio/Letras, São Paulo, 1973 (em novembro de 1972 o autor proferiu esta conferência na Faculdade de Letras de Lisboa).

sábado, 3 de abril de 2010

Mais erros do que acertos

Se encontrasse um buraquinho
Em qualquer parede que fosse
Lá depositaria todos os segredos
De uma vida rica em contravenção
Dos amores roubados de seus maridos
Dos desencontros de hora marcada.
Se encontrasse um buraquinho
Aliviaria a minha dor sentida
Nos momentos de desespero
Por não ter mais com quem falar
Daquilo que sufoca a alma rendida.
Se encontrasse um buraquinho...
Pararia de lamentar os erros cometidos
Quando o erro maior foi talvez
O desejo de acertar.
Mas errante sou
Caminhante do erro que pode
Não errar!

Um vôo que flutua

Lá em cima
Do andar de cima
Uma mulher chamada Esperança
Resolveu por a cara de fora
Depois as pernas braços e dorso
Ficou balançando de um lado para outro
No vai e vem do vento traiçoeiro
Quando alguém de baixo viu
Outro alguém também chegou
Um outro um outro ainda
Formou-se uma multidão
Que agitava os braços e
Pedia para ela não saltar
Que tivesse amor pela vida
Que não saltasse mais
Que pensasse em sua mãe
- Esperança não tinha mãe
Que pensasse então em seu amor
O amor que ela teve um dia
- O amor dela não existia mais
O amor se foi e
Esperança ficou
Ficou a Esperança sem ninguém
Sem amor sem amigos
Sem inclusive inimigos
Esperança ficou
Sozinha
Solitária e só
Mas agora a multidão pedia
Esperança não ponha tudo a perder
Esperança ainda não vá morrer
Mas Esperança soltou uma perna
Soltou outra perna e flutuou
Sem amarras alguma
Pois Esperança não podia mais
Viver apenas
Esperança.

A louca da rua

A louca da rua também
Arrumou um namorado
Com ele arrumou sua vida
Que antes solitária vida
Não havia quem podia
Continuar a semear em
Canteiro vasto e adubado
Sementes de gergelim
Que nada produzia
Além de fadiga pela espera
De uma colheita
Que nunca acontecia.
Assim era vida da louca
A louca da rua
Que nada queria
Queria
Somente um namorado
Podia ser vesgo
Sem uma perna
Cicatriz no rosto
Qualquer coisa que seja
Apenas tinha que ter
Um coração afável
Capaz de amar até mesmo
A louca da rua
Que enlouquecida de amor
Ao primeiro daria
Seu coração
Seu corpo inteiro
Daria a sua vida
Por amor
Só por amor.
Por isso chamavam-na de
A louca da rua.
Somente os loucos
Loucos de verdade
Verdadeiramente amam
Sem medida sem rancor
Por amor.
Por amor.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ladeira acima

Empurrando ladeira acima
Vai o catador de papelão
Seu cão também vai
Uma carroça rangendo
Os ferros que arranham a roda
Nada mais triste que ver
O catador de papelão.
Não interessa se faz chuva
Se faz água por cima
Do catador de papelão.
Um dia a carroça quebrou
A roda soltou-se
Ainda assim continuou
Arrastando ladeira acima
O catador de papelão
Veio a primavera e verão
Vieram as flores e depois
Vieram outras flores
Vieram os guardas
Afugentando os camelôs
Veio a morte
O catador de papelão
Continuou a subir
Outros morros como sempre fez.
Outros catadores de papelão
Apareceram
Pois a subida dos morros
Haveria de continuar...

Do lado de lá

Quando ouço o repicar
De uma matraca que avança
Um som monótono longo
Que vontade que dá
De sair desta terra
De ir para o lado de lá
Que vontade que dá!
Já cansei das artimanhas
Todas as manhas de uma vida
Sem grande alegria
Sem tristezas também
Sem bailes no Clube Ideal
Em que as moças de família boa
Circulam suas saias rodadas
Suas bocas de carmesim.
Mas do lado de lá
Nenhuma monotonia aparente
Tem festa o ano todo
Tem o piano de Ray Charles
Tem sereias no mar
Com uma delas pode ser
Possa me casar e assim
Afogar todos meus lamentos
Na última onda a rebentar
Na areia fina e desmoronar
Os castelos de areia.

Ao fundo da casa

Os casarões velhos em que passo
São restos de uma existência passada
Que ainda carrego nos espaços mais
Profundos de minha alma escura.
Mergulhando fundo nada mais se faz
Presente do que um centauro desgarrado
Um fauno embriagado de sua loucura
Poética e musical perdido numa floresta
De araucárias estendendo galhos de cristais.
Nada mais
Nada mais conheço de outros habitantes
Mágicos e passionais lidando com venenos
E remédios promovendo vidas longas
Aos de coração grande.
Aos de coração pequeno
Consolo de sua própria solidão.
Nenhum medo pode me assustar
Seja pelos caminhos de pedra
Seja pelos caminhos da água
Seres da pedra e da água
Companheiros de uma eternidade
Criados no início da criação
De um sonho que foi mito
De um remoto respirar galáctico.