terça-feira, 27 de março de 2012

Paredes sujas de palavras

Quando as paredes não aceitarem
Nenhuma escritura
Destas carcomidas pelo tempo
Sujas
Muitas delas imundas
Onde mais poderei escrever
Escrituras
Que possam ser lidas
No anonimato
Clandestinos das periferias?
Quando nenhuma parede for possível
Impossível será viver
Senão na angústia
De dizer somente
Aquilo que pode ser dito
E serei maldito na contramão
De um fluxo corrente
Só por correr diferente

Um cínico esquecimento

Simplesmente esquecemo-nos
De que as almas atropeladas
Necessitam de cuidados
Que deixados de lado
De lado continuam existindo
Sem que nada seja feito
Ignoradas
Para que o tempo dê tempo
Para um possível perdão
Quando isso acontecer
Os cabelos brancos formados
Não resistirão
E nada mais precisará
Ser feito
Como nada tivesse
Um dia
Acontecido...

Passagem do tempo

Mais uma vez março
Chega ao fim
Como da vez anterior
Como se quiséssemos
Mantê-lo
Infinitamente
Março
E março iniciava-se
Para continuar apenas
Março
E assim nenhum outro
Mês seria possível
Ninguém nasceria
Ninguém morreria
Que não fosse em março
Mas março se foi
Mal começou
Não demorou muito
E passou
Como nunca estivesse aqui
Deixando saudade
Que também
Passou

sexta-feira, 23 de março de 2012

Caçador de imagens

Imagens que um dia
Capturei
Não eram minhas
Nem eram minhas
Os olhos que pensei
Serem minhas
Nem minhas lentes
Eram minhas
E assim aquelas imagens
Foram-se
Como pássaros fugidos
Que achei um dia
Seriam minhas
Apenas minhas
Uma ilusão insensata
Que se foi também
Não mais minha

Caminhos de pedra e terra

Havia no caminho
Uma pedra
Havia no caminho
Duas pedras
Ainda assim continuei
Caminhando
Ainda que pudesse
Encontrar pelo caminho
Mais uma pedra
E um dia passei
A achar que todo caminho
Era de pedra
E meus pés antes macios
Sangraram
Sem que ninguém se importasse
E meus pés endureceram
E meu coração antes duro
Teve que de vez
Amolecer
E nenhum caminho
Foi suficientemente duro
Nem duro foi a pedra
Capaz de deter meu caminho
Meu caminhar lento
Parado e andado
Caído e levantado
Numa teimosia
Que alegra o andar
Deste andarilho.

domingo, 11 de março de 2012

Os demônios criados

Podem xingar
Não revido
Podem cuspir
Não revido
Podem maldizer
Não revido
Podem ameaçar
Não revido
Podem desprezar até
Ainda assim não revido
Quem sabe assim
Possa rir de mim mesmo
E das pessoas sérias
Que acreditam
Em suas próprias seriedades
Vitaminadas
Com cápsulas de prosac
Papelotes de açúcar

Um ano depois do vendaval

Pelas veias ainda em turbilhão
As ondas que varreram em instantes
Imensas costas japonesas
Levaram as vidas que jamais
Serão vividas
Abaixo do mesmo sol
Em que compartilho
As dores passadas
As dores presentes
De um tsunami
Que não deixará cedo
A memória dos filhos do Oriente

domingo, 4 de março de 2012

Uma gata pichada

Havia numa parede suja
Uma pichação
Que na calada da noite
Alguém deixou cair a tinta
Uma gata imensa e preta
Solitária
Que acordou de enxaqueca
De uma noite mal dormida
Uma gata perdida
Abandonada na rua
Arredia

O passado é agora

Quando o esquecimento não vem
Continuamos vivendo
Com a alegria de ter passado
Uma alegria repentina
Uma faísca vivida
Que ainda teima em não se apagar
Que ainda teima em manter-se acesa
Por teimosia
Apenas por teimosia

Passageiros de viagem

Alguns passam em nossas vidas
Passageiros de uma viagem
Que começa sem nenhum aviso
E passageiros ficamos amigos
E de passagem lá se foi
Num instante
Sem deixar pistas
Pelo caminho
Sem saudades
Como nada tivesse passado
Passado que esquecemos
Em seguida
Para começar nova viagem
De passagem

quinta-feira, 1 de março de 2012

Minha vó, que se foi sem avisar
não mora no firmamento
nem saiu de viagem
vive, secretamente, só eu sei
no cheiro delicioso
da uva Niágara