domingo, 30 de outubro de 2011

Via expressa

Adiante estava anunciando
Pare!
Alguns passaram
Sem respeitar a placa
Pare!
Por um momento
A vida parou
Para uns
Para mim a vida
Continuou
Indiferente o que dizia
Aquela placa
Pare!
Continuei parado
Por algum tempo
Sem que o mundo
Deixasse de girar
Um segundo sequer.

Viagem sem destino

Não renego
Jamais
Uma vontade insana
De partir
Sem destino certo
Destino algum
Pode ser Kanchaka
Pode ser a Conchinchina
Que deixou de existir
Quero partir para lugar algum
Acima do Equador
Abaixo do Equador
Onde as mulheres não envelhecem
Mais
E oferecem seus colos
Para que os pássaros façam ninhos
E uma cachoeira caia
Para que os homens afoguem
Suas mágoas
Para continuarem a viver.

Sem rastros sem saudades

Que pode ser mais ilusório
Do que o tempo passado
Como nada tivesse realmente
Acontecido
Como tudo tivesse realmente
Acontecido
E assim desaparecido
Como uma nuvem branca
Que neste momento havia
E se desfez
Como nunca tivesse realmente
Havido.

Que me importa
As evidências de uma suposta
Existência
Se não existe mais
Nem mesmo a lembrança
Que a cada momento
Mais opaca fica
E um dia chega
Em total amnésia
Do que foi um dia.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Em causa perdida

Era uma casa de secos e molhados
Era a casa de minha mãe
Em que me perdia nas prateleiras
Das garrafas de groselha
Perdia-me com tamanha vontade
Que nunca mais voltei
E perdido continuo
Misturando as letras
Dos rótulos
E enganando o tempo
De avançar.

Noites de sonolência

Em minhas noites
Ainda me assombra
O homem preto
Carregando um saco enorme
Cheio de biscoitos.
Sua voz é rouca
E anuncia roucamente
Biscoito
Biscoito
Biscoito
Nunca comprei
Biscoitos dele
Nem sei se realmente gosto
De biscoitos
Mas ele insiste...

Nada mais acontecia

Todos os dias
Naquela mesma hora
Duas velhas caminhavam
Em direção à igreja.

Todos os dias
Naquela mesma hora
Dois soldados montavam
Guarda na porta do quartel.

Sempre era a mesma coisa
Nada mudava
E por anos continuou assim
Por detrás daquela janela
Os olhos que espiavam
A rotina de sempre.

Um dia
Uma das velhas não passou
E criou-se um alvoroço
O que teria acontecido?
Os soldados levantaram armas
E apontaram
Até que a velha apareceu
E assim
Duas velhas passavam
Em direção à igreja.

Nada mudou na vida
Daquela cidade
Que nada acontecia
Senão a passagem
De duas velhas
Em direção à igreja.
Como sempre foi
E qualquer mudança
Não era bem vinda.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

As meninas das brincadeiras

Aquelas meninas com quem brinquei
Um dia
Onde andarão?
Terão crescido?
Não seria justo
Não seriam mais meninas
E que não brincam mais
E que esqueceram também
Que um dia
Brincaram também.

Em algum lugar neste mundo
Pode ser
Pode ser debaixo de uma folha
Oculto numa nuvem
Numa estrela
Em algum lugar neste mundo
Continuam brincando
E continuo brincando com elas
Que nunca cresceram.

Somente cresceu
Minha falta de inocência
Somente cresceu
Minha total intolerância.

domingo, 16 de outubro de 2011

As crianças levadas pelas ondas

Aquelas bonecas de madeira
Branca
Aquelas bonecas japonesas
Sem braços
Sem pernas
Que segredos esconderão?

Kokeshi ningyo
Assim se chamavam
Kokeshi ningyo
Foi assim que as conheci
Que serviam para enfeitar.

Bonecas de madeira
Bonecas de Miyagi
Que as altas ondas destruíram
Carregando casas
Carregando crianças
Carregando bonecas
Carregando kokeshi ningyo
De Miyagi.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Felicidade cruza a rua

Prestes a atravessar
A rua
Chega alguém
Que nunca vi
Que nunca mais verei
Em questão de instantes
Lança-me uma pergunta:
- Você é feliz?
Que direito ele tinha
De perguntar
Pergunta tão pessoal
Que resposta alguma
Foi devolvida
Só queria saber
Se alguém que cruzasse
Na rua
Era feliz
Apenas isso
Mas nada foi dito
E cada um foi para
Um lado
Como nada daquilo
Tivesse acontecido
Algum dia
Que importância tinha
Afinal
Se alguém era feliz

E Nagasaki ficou

Tenho na sola dos pés
O solado que ficou
Das ruas de Nagasaki
Por onde andei e saudade
Ficou
Em Nagasaki ficou
Um pouco de mim
Das águas daquela cidade
Em que me banhei
Curei um pouco
De uma doença imaginária
Que de pouco a pouco
Novamente
Toma conta de mim
Mas quando me lembro
De Nagasaki
Durante a primavera
Chega-me um consolo
Soprado por um vento
Que venta de lá
Que venta em mim

Nas águas plásticos do kingio

Numa esquina que
Jamais esqueci
Jamais voltei
Ainda existe
O vendedor de kingios.

Era naquela esquina
Num saco plástico
Quase a sufocar
Naquelas águas
Kingios nadavam.

Naquelas águas
Ainda
Os kingios continuam
A nadar
Como que o tempo
Não mais existisse.
Kingios coloridos
Dois kingios
Um casal de kingios.

Cheguei a pensar
Que o kingio era eu
Mas um dia
O kingio morreu
Cheguei a pensar
Que o kingio era eu.
Meu egoísmo foi tamanho
Que recusei-me a morrer.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um bolo na cara!

Nem sei que razão há
Irracional seria se houvesse
Alguma razão
Para se comemorar
Aniversários.

Após cinco décadas de vida
Metade de uma vida
Ainda se para
Para comemorar
Aniversários.

Ser lembrado causa
Constrangimento
Por estar mais enrugado
Menos sonhador
Mais próximo da própria morte.

Se for assim
Comemorar talvez seja
Comemorar o ano que foi
Sobrevivente das tempestades
Amorosas e reumáticas
Febres sem motivos
Físicos e espirituais.

Comemorar é ironia
Que não combina
Fora de tom
Que não tem rima.

O Poder da palavra mítica

Da mesma forma que, no ato de Criação, a palavra divina do Ser Supremo veio animar as forças cósmicas que se acham estáticas, em repouso, a palavra humana anima, põe em movimento e desperta as forças que se encontram estáticas nas coisas.
À imagem da palavra do Ser Supremo, da qual é eco, a palavra humana põe em movimento forças latentes, que despertam e acionam algo, como ocorre quando um homem se ergue ou se volta ao ouvir chamar seu nome.
A palavra humana é como fogo: pode criar a paz, assim como pode destruí-la. Uma só palavra inoportuna pode fazer estourar uma guerra, assim como uma simples fagulha pode provocar um incêndio.

LOPES.Nei, Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos, Rio de Janeiro, Senac rio, 2005, p.31

Sabedoria popular será

Num muro
Da Praça Roosevelt
Numa pichação
Estava posto
“Viver é esquecer
Lembrar é sofrer”.

Mas pode se diferente
Poeta ausente
“Amar é perder
Viver é fingir”
Poeta fingidor.

Um ipê amarelo mirrado

Acreditem
Como no ano passado
Como no ano retrasado
Como nos anos que passaram
Uma década se passou
E todo ano
Passado o ano
Novamente floresceu
No mesmo jardim
O pequeno ipê
Mirrado ipê
Sem presença
Quase oculto
Sem que ninguém notasse
Até que notei mais uma vez
O mesmo ipê
Com galhos delgados
Soltando na brisa
Uma flor hoje
Outra amanhã
Sem inundar nunca o jardim
De maneira discreta
Sem que ninguém percebesse
Que continua florindo
Ipês amarelos
De beleza imensa
Mais bela ainda
Do que todos os outros
Ipês amarelos floridos
Desta cidade.

As paredes brancas de cal

Ainda que as paredes sejam surdas
Elas ouvem
Ainda que as paredes sejam mudas
Elas falam
Mas basta uma camada de cal
Para calá-las
Se enxergavam
Não enxergam mais
As paredes testemunham
A vida acontecendo
E vivem juntos
E juntos também morrem.

O rosto de um outro

Nunca olhei para espelhos
que refletissem o meu rosto
que desgosto era me ver
e sem saber de quem era
aquele rosto.

Um rosto refletido
de alguém
não sei
de quem é o rosto.

De alguém com quem
nunca vou me encontrar
com quem nunca vou falar
nem tomar café no bar.
Ainda que seja assim
anda ao meu lado
aquele rosto
não muito familiar
um pouco antipático
como dissimulasse
um sorriso forçado
que nunca quis dar.

Um rosto que existe
para todo mundo
só não existe para mim
que carrego
como fosse alguém
totalmente estranho
sem nenhum caráter
sem coragem
sem dinheiro no bolso.

Não procuro por ele
não procuro por mim
que sem rosto
somente o espelho reflete
o que os outros vêem
sem saber
de quem é aquele rosto.
Talvez seja o rosto de todos eles
menos de mim
que não tenho nenhum
que possa ser visto por mim.

Um tufão por aqui se foi

Como um tufão passou o tempo
E não deu tempo para salvar
O que estava na sala
Cujas paredes testemunhavam
Uma história
Que merecia ficar
Não ficou sequer
Uma pedra sequer
No mesmo lugar.

Quem ficou para contar
Não contará
Assim nada aconteceu
Continua acontecendo ainda
Em algum lugar
No fundo do mar
É a sereia que sabe
É o lobo marinho.

Naquelas águas visitarei
Naquelas águas visitará
Quando o tempo chegar
Com barbas brancas
E histórias para contar.

sábado, 8 de outubro de 2011

A movimento do universo inteiro

A escolha é um relâmpago ⎯ eis o trovão
a chuva e

o estio


Do sol azul
também não quero nada

nada


Poesia é assim ⎯ qual o meu nome?

Palavras são vivas como o braço de uma cadeira e o que é vivo é não conhecer descanso

Nem prisão

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Assim Cláudia caminhava

Cláudia claudicante
claudicava constantemente
e perdia a postura
toda a descompostura
até se levantar novamente
e novamente
continuar em frente
indiferente a tudo
que pudesse
por uma pedra
em sua andadura.

Por onde andava
deixava atrás de si
os homens enlouquecidos
de amor
que enlouquecidos
ficaram por ali
errando na vida
vivendo a vida
de todos os devaneios.

Com Cláudia aprendi
que claudicar
também é viver
sem padecer
um instante sequer
e rir
e chorar
e morrer a cada momento.

Se procurarem por ela
não acharão
em nenhuma estrada
perdida neste mundo
afinal ela sempre anda
na contramão.

Solitária em suas andanças
nenhuma companhia é melhor
do que a sombra companheira
que aprecia poesia
uma dose de cachaça fria
para espantar o tédio.
Claudicante caminha
sem retroceder
caminha
sem direção
caminha
onde o caminho leva.

Primavera insana

Em tempos de primavera
o que comemorar?
Se a lagartixa de sempre
continua a defecar
no mesmo local
animal hibernal
que nada mais faz
do que viver no teto
nas trincheiras de madeira
uma vida guerrilheira
de uma causa perdida
pois nenhum sonho mais há.

Ninguém mais assobia
uma triste melodia
só para irritar
os bens de vida.

Ninguém mais dança
um bolero de Ravel
daquela cigana
que tinha o mundo.

Em tempos de primavera
o que comemorar?
- Um aniversário que ficou velho
que cansado preferiu parar.
Pelo menos estamos vivos
com dores por todo corpo
sobreviventes de uma acidente
nuclear.

Em tempos de esquecimento

Quem era você
não me importa mais
se o tempo passou
passou também a vassoura
pelos jardins da memória
não deixando sequer
uma folha atirada
ao relento.

Sempre te conheci
nunca te conheci realmente
nem sei mais seu nome
que também mudou.
Seu rosto mudou
em instantes
e nada mais
me parece familiar.

Fico-me a perguntar
em que momento parei
de sonhar
e todo o sorriso que havia
se desfez
como castelos de areia
levados pela água
salgada do mar.

Peregrino sem causa

Em cada esquina de minha vida
um pouco que seja
esqueci-me de quem era
e deixei amores
e deixei livros
que em minhas costas pesavam
mesmo assim eram minhas
as pernas
que doiam e caminhavam
por onde o caminho levava
e venci encruzilhadas
e perdi batalhas
e cada batalha perdida
nem sabia mais o que
realmente perdia.

Não era o que importava
se importava alguma coisa
além do que caminhar.

Não era a minha vida
perdida em andanças
cidade adentro
cidade afora
em vilas da periferia.
Era a vida daqueles
que não mais caminhavam
por cansaço talvez
por indigestão talvez
por desistência quem sabe.

Daqueles que caminham
estes ainda conseguiam ver adiante
o mundo desmoronando
sem que nada pudesse fazer
senão contemplar
o vento varrer o horizonte
de maneira lenta
acariciando a pele molhada
pela chuva de primavera
perfumada e doce.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A tristeza de viver

Num muro pichado
Um dragão pichado
Com garras de leão
Ganhava vida
E revirava os olhos
E saia à procura
De um herói
Que pudesse matá-lo.

Assim fez
Uma vez
Duas vezes
Outras vezes
Sem que encontrasse
Uma lança resistente
Uma espada cortante
Que pudesse matá-lo.

Não havia heróis
Nem anti-heróis
Que pudesse contar
Uma história simples
Com final feliz.
Um dragão havia
Numa velha pichação
Que envelhecia
Enegrecida pelo tempo
A graxa escura do tempo
Que também deixou
De existir.

E não havia
Quem pudesse matar
O dragão da pichação
Que desiludido
Continuou vivendo
Naquela parede
Sem chamar a atenção
Sem a chama da paixão
Indiferente a tudo.

Marcando para sempre

Escrevestes teu nome
Em tua pele
Escrevi meu nome
Em teu coração
Em tatuagem.