terça-feira, 30 de novembro de 2010

Canção do mendigo

Que existe de excepcional afinal
Se abaixo do mesmo viaduto
Passe ano todo engano
O mesmo mendigo continua
Naquele exato ponto
Sem se importar com o passar do tempo
Passado e presente de pouca importância
Para o mendigo de sempre
Que vive tão somente
Momento presente
Um cão sua companhia
Nada mais precisa
Até que a mulher se fora
E assim se consola
Tomando tragadas que consome
De cirrose hepática
Suas tripas já totalmente
Deterioradas.
Nem isso é motivo
Para morrer agora!
Por teimosia não morre
Não se morre no abandono
Mas se morre por falta de amor
Por isso continua ele
Amando as mulheres que teve
Que vivem agora
Todas elas num sonho
Sonhado pelo mendigo
Sonhado agora.

A arte subversiva

Parece-me bastante possível sustentar que a função da literatura como força geratriz digna de prêmio consiste precisamente em incitar a humanidade a continuar a viver; em aliviar as tensões da mente, em nutri-la, e nutri-la, digo-o claramente, com a nutrição de impulsos.
Esta concepção talvez inquiete os amantes da ordem. Assim como muitas vezes os inquieta a boa literatura. Consideram-na perigosa, caótica, subversiva.

POUND. Ezra, A arte da poesia – Ensaios escolhidos, São Paulo, Cultrix, Edusp, 1976, p.32

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Antes

Por favor me desconheça. É muito?
Nem sei mais. Mas faça esse favor
queira assim desde já ⎯ ouça
nem mesmo os relógios sabem do tempo
nem eu poderia pedir nada mais valioso

Me desconheça sempre antes da intenção
É pedir muito? Me olhe não me olhe assim
Não seja espelho, antes vidro, antes brisa

.

domingo, 28 de novembro de 2010

A beleza é de outro lugar

Nenhuma reconciliação é possível
Se impossível fosse viver sem beleza
Ainda que toda atenção fosse dada
Naquilo que fosse útil.

Nada mais inútil que o esforço
Em buscar uma felicidade
Que deixou de existir num mundo
Em que nenhuma beleza fosse mais
Possível.

Nenhum lugar para o amor
Cujo preço é padecer de um sentimento
Sem lugar neste mundo.
Somente existe nos corações
Dos tolos e doentes
Que vivem para sofrer.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O terceiro olho

Três segredos eu contei sem você chegar
⎯ os meus olhos fosforescentes ⎯
três chances de escapar da vida eram
três vezes, três vezes eu sorri sem boca

.assim foi

e senti o tempo vibrando minhas mãos secas
Sete flores em vão eu colhi com estes olhos sem você
⎯ e no fundo, no-fundo-no-fundo, o por-do-sol é como
piche sobre carvão ⎯ sim
foram três segredos sem ouvidos
foram três chances ao pó
e seguir alegre estrada era
arribar em bando dentro da ventania
sumindo cintilante sob o sol frio

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pergunta

Quando será que virá o desapego das antigas formas mistificadas para uma resignificação da realidade? Será que nessa mudança a realidade poderá ser percebida sem a conformação imposta pela cultura?

domingo, 21 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Um canto por Haiti

O que acontece nas terras do Haiti
O que acontece com as mulheres do Haiti
Senão a de continuarem a morrer
E seus filhos também
Enquanto nada mais se faz
Senão uma nota lacônica no jornal
Sem nenhum pudor
Como nada mais tivesse acontecido
Um pouco acima da linha do Equador.

Como nada mais importasse
Os olhos estão cegos para ver
Os ouvidos surdos para escutar
E o coração?
Parou de tocar
Como nada mais importasse
Com as mulheres do Haiti
Magras e sem brilho nos olhos
Que amaram seus homens
Que amaram seus filhos
Que não são amados por ninguém.

O que acontece nas terras do Haiti
Ninguém sabe
Ninguém toma conhecimento
Nem ao menos se importam
Que morrem
E devem ser enterrados
Pelos seus próprios mortos.

Ouçam o lamento
Das mulheres do Haiti
Ouçam
Apenas ouçam aqueles
Que tiverem ouvidos para isso.
Ainda assim
As mulheres do Haiti
Sorriem seus dentes brancos
Pois mais do que elas
Quem necessita de ajuda
São os que não estão no Haiti.

Bendito Haiti!
Dos deuses da África.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Palavras vazias 02

De beleza inigualável
De consoantes alinhas
A vogais desenhadas
Contínuas sem menor objetivo
Seguidas do pior significado
Sem dado
Sem nada
Se algo pra querer
Ser e escrever
Letras e letras costuradas
Atrás, umas das outras
Sem fio
Sem fio da meada
Sem nada
Vazia
Apenas bonita
E de que me adianta
Palavras vazias
Se elas nada preenchem
E sim são preenchidas com as idéias
Da mente
Que cada um tem uma
De forma diferente
Que completa
O vazio
Como a água que
Completa um rio

Um poema sujo

O que pode ser mais maldito
Do que a sinceridade das palavras
Dessas que saem espontaneamente
Que assustam
Que acusam
Que nos arrependemos depois
Por causa de toda a verdade
Afinal vivemos para mentir
E por isso medimos as palavras
E mentimos para nós mesmos
O desprezo de nossos sentimentos
Aqueles mais profundos
Alguns imundos
Sujos e carnais
Porque bonito é ser espiritual
Como no mundo dos anjos
Que não amam mais
Nem odeiam
Apenas obedecem.

Redemoinho de nossas vidas

Continuamos repetindo o mesmo
Movimento circular de sempre
Sem nunca sair do lugar
Rodopiando em roda
Até cansar as pernas
E quando cansamos
Paramos e ficamos pensando
Do erro que cometemos antes.

Num outro ponto
Novamente damos início ao
Movimento circular de sempre
Pensando fazer alguma coisa nova
Mas velho ficou antes de começar
Achando que antes erramos
Mas fazemos o mesmo
O mesmo de antes.

E assim vivemos
Repetindo sempre
Em redemoinho sempre!

Claridade ofuscante

Muitas vezes temos que
Fechar os olhos
Pois a claridade ofusca
E quando fechamos
Uma nova claridade
Clareia intensamente
O que antes escurecia
De podermos enxergar
De outra forma
Com as lamparinas internas
Sem medo de ocultar
Nenhum ser das sombras
Que saem das regiões cavernosas
Carregando suas armas
Uma imensa rede de pesca
E deixamos nos pescar
Sem medo de morrer na praia
E se morrermos sempre estaremos
Em nossa casa.
De onde nunca saímos
Nem nascemos.
Apenas seduzidos por uma fresta
De luz exterior
De uma luz interior
De uma luz qualquer
Caímos na ilusão
Pois luz
É mais escuridão
Que todo nosso raciocínio
Possa ter.
E quando pensamos
Clareamos a nossa mente
Para não enxergar mais
E toda confusão se torna
Latente.

domingo, 14 de novembro de 2010

Um poema irônico

Nada mais pode ser resgatado
De um tempo que ficou atrasado
Senão a imagem desfocada
De uma miopia sentimental
Que carece de óculos de grau.

Quando menos se espera
A poeira de uma saudade imensa
Chega de mansinho
Bem devagarzinho
E se instala em feridas ainda
Mal fechadas
Nunca resolvidas.

Nada mais resta do que sentir a dor
E perder-se em cada gemido
Silenciosamente sentido
Mas mostrando na cara
Um sorriso irônico de si mesmo.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sensação de impotência

Sensação de impotência

É de impotência a sensação
De, após caminhar um dia
Com uma miríade de sentimentos
E de experiências
Não poder mover um dedo se quer
Em pro da verdade
Em prol do meu juramento

É de impotência a sensação
Sentar e somente assistir
Sem poder jogar
E marcar pontos para ambos os lados
E marcar sorrisos em ambas as faces

É tão difícil
Entender
Viver e conviver
Ainda mais sem poder
Dissolver o sofrimento
Incrustados não sei onde

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Corpo

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1979. p. 22.

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo.