segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Olhos sem colírio

Um olhar perdido no tempo
Isento de qualquer brilho
Não olha para lugar algum.

Não olha para poder ver
Aquelas formas abissais
Que habitam a casa vizinha
Mais ao fundo do corredor.

Acabou a música

Houve um dia em que
Na mesma dança dançava
Um casal que não se deixavam
Um minuto sequer
Não perdendo sequer
Um volteio
Um rodopio
Até que um dia
A corda quebrou
E a caixinha de música
Parou de funcionar.

Nunca mais dançaram
E depois de algum tempo
Largada num canto qualquer
Acabou no esquecimento.
Cigarra canta
Como geladeira velha
Soando no verão

-

Rosa flor
Com pássaro de madeira
Disputa espaço

domingo, 30 de janeiro de 2011

Trigos ressecados

Pelos trigais amarelados
Ao sabor do vento
Os ramos deitam num instante.

Os ramos que colhi
Nunca a ti entreguei
Secaram-se completamente
Num vaso abandonado
Num canto da estante.

Vida fingida

Os olhos que não se cruzam
Cruzaram um dia!
Os olhos que não se cruzam
Fingem apenas!

A vida é todo fingimento
Pelo medo de que
Numa esquina mais escura
Um ladrão sorrateiro
Uma mulher da lua
Roube o coração.

Quisera ser um esquecido

Como invejo o amigo que esquece
Que pode dormir que logo esquece
Que vive seu dia e tão logo esquece
Sem que nenhum fantasma da memória
Venha a lhe perturbar o sono
Venha a lhe perturbar o dia
Que cada sofrimento sentido
Que de imediato é esquecido.

Meu sofrimento é outro:
É que não esqueço!
Ainda que tente a todo custo
É que não esqueço!

As tardes mais escuras

Nunca mais seus olhos de vidro
Brilharam novamente
Assim nenhuma luz refletiu mais
E sem luz
Em escuridão completa ficou
As plantas deixaram de crescer
As flores deixaram de perfumar
Mas ainda assim a vida continuou
Sem a presença da bailarina
Que dançava uma dança inventada
Naquela hora
E a música inventada numa gaita
Inflada nos pulmões.
Os palhaços perderam a graça
E tristes encolheram-se num canto
Mas ainda assim a vida continuou
Pois o artista equilibrista não perde a pose
E na corda bamba da vida balança
O suficiente para despertar o riso
De um menino que não se retirou
De uma platéia cansada de sofrer.

Os males do Amor

Um cão de três cabeças
Guarda a porta de Hades
Para que nenhum demônio
Fuja e ponha o mundo
De ponta cabeça.

Um dia a corrente rebentou
E Cérbero se pôs a vagar
Pelas noites e uivar para a lua.
Todo o Terror debandou-se afora
E todo o Amor se pôs a corromper
Em completa liberdade os homens sedentos
De Amor pelas mulheres sedentas também.
Embriagaram-se pelas vinhas de Dioniso
Ao som melífluo da flauta de Pã
Enquanto as bacantes dançavam
Em êxtase e o mundo foi povoado.

Mas os deuses temerem
E mandaram lanceiros para
Por ferros em Terror
E Amor também sucumbiu
E Loucura também foi presa
Toda Música parou de tocar
Sem dança alguma
As dançarinas se retiraram
E novamente a ordem prevaleceu.
Cérbero capturado foi posto em correntes
Em cravos fincados numa rocha
Vulcânica selada pela lava seca.

Nunca mais o Amor habitou a Terra
Nem o Céu
Pois Amor foi enclausurado
Em Hades
Para que a Loucura não mais
Perdurasse em toda a Terra.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Marcada a ferro e ponta

Aquelas meninas fora de casa
Não moravam com seus pais
Se tinham pais não se sabia
O que tinham feito não se sabia
Estavam todas isoladas
Tinham no corpo uma marca
Uma tatuagem funda
Que nunca mais seria apagada
Uma tatuagem funda
De uma carência sentida
Marcada na brancura da pele
Que não poderia ser mais escondida

O ser da salvação

Mil sãos os braços de Kannon
Para mil seres salvar
Minha imagem de Kannon
Tem apenas dois braços
E apenas uma mão
Para salvar desta vez
Mil e um seres!

Sinto-me como a própria
Kannon de uma mão só.

Jogar para perder

Jogo da amarelinha
Nunca joguei
Jogo da amarelinha
Que continuo jogando
Jogar para ganhar
Não mais
Apenas jogamos
E perdemos
E continuamos jogando
E ganhamos
Para continuar jogando
E perdemos
Para continuar jogando
E perdemos
Mais perdemos que ganhamos
Mas ainda assim
Respiramos
E jogamos numa perna só
Trocamos de perna
Cansamos
Caímos e nos levantamos
Caímos no inferno
E perdemos
Chega um tempo
Em que perder ou ganhar
Não importa mais
Só queremos jogar
Só queremos viver
Só queremos amar
Sem ser correspondido
Mas continuamos
Tentando!

Flores secas

Rosas vermelhas ficaram
De uma vez secando
Rosas que não mandarei
A qualquer uma que seja
Portadora de um sentimento
Insano.
Rosas que ficaram na memória
Que cada vez mais vai
Se enevoando.

Janeiro de nossas vidas

Apenas neste momento
O som cortante de uma serra
Que corta uma tábua de construção
E faz esticar ainda mais
Janeiro que insiste em ficar
Nestes dias passageiros
Em que as folhas de verão
Despencam cada vez mais
Pelas ruas da Consolação
Nem os garis trabalharam tanto
Que suas vassouras desgastaram-se
De tanto serem esfregadas
No piche das ruas asfaltadas
Em tamanha desolação.
Ainda janeiro não se foi
Não sinto saudades
Nem sinto o vapor em meu rosto
Mais
De uma época em que
Quase o tempo parou!

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Silêncio ao cair da noite

Pelas ruas escuras
Os mendigos silenciam-se
Sem que ninguém se dê conta disso
Nem se importam com isso
Como que isso fosse realmente
Importante?

Por isso o que mais choca
Não é o mendigo
Mas o silêncio do mendigo
Que nada mais quer
Senão ficar pela noite toda
Em completo silêncio
Por isso o que mais choca
Neste poeta que toca
Não é o mendigo
Nem o silêncio do mendigo
É a ausência de uma palavra
Que pudesse expressar
Um pouco que fosse
O próprio silêncio
Que nada mais precisa
Senão calar-se para poder
Dizer algo que fosse
Verdadeiramente
Uma verdade sem engano.

Um choro que não choro mais

Ainda em meus ouvidos
Ecoa cortante
O choro das cigarras
Ecoa cortante
O choro das mulheres solitárias.

Mas quanto a mim
Por muito parei de chorar
E uma tristeza à toa
Visita-me sem convite algum
E se retira também
Quando lhe apetece
E se vai após tomar
O chá da tarde!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vejo da janela
A cidade com biscoitos
Férias de verão

-

Noite se prolonga
Entre passado e presente
Amigos de escola

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Saudade

Tempo que foi e ainda é
Saudade que é só depois que foi...
Pensar, e se não pensar também:
Saudade ainda assim.
Faz já bastante tempo,
Ilusão de agora há pouco...
Tempo passado, e saudade tão viva...
As vozes, os risos, as palavras, o canto,
Tudo tão vivo em meus ouvidos, olhos, nariz,
Tudo tão... tão... vazio. Sem formas?
Sim.
Sem olhos, ouvidos, nariz e tudo o mais.
Apenas ilusão, a ilusão da lembrança.
Sentado, no exílio, mas sentado.
Bato os sinos e os tambores numa floresta
Que som eles fazem?
Não sei, não ouço.
Queimo incensos
Que cheiro tem?
Não sei, não sinto.
Acendo velas
Qual é a sua cor, a sua luz?
Não sei, não vejo.
Mas forma é vazio,
E vazio é forma,
Gashô!

Chuva

Eu fecho as janelas
E mesmo assim
A chuva não para de cair!

As janelas se fecham
Os pingos morrem lá fora
O trem não para

-

Acima da chuva
Os raios cortam o céu
Abaixo da chuva

-

Na mesma chuva
Fazia dia e noite
Quantos trovões!

domingo, 23 de janeiro de 2011

sábado, 22 de janeiro de 2011

Crescem as unhas
E plantas nas paredes
Dia de verão

-

Corto as unhas
E a plantas nas paredes
Chuva de verão

-

Mãe, filho e gato
No caminho que se cruzam
Noite de verão

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Pernas inquietas
E com fones nos ouvidos
Metrô a noite
Tortuosa é a árvore
Como plantada invertida
Tarde de verão
Céu de nuvens cinza
Sento no banco azul
Passado sem carro
Galhos na janela
Como tambor afinado
Ônibus vazio

Velho lobo do mar

Me lembro de quando era menino
E via as ondas no mar
Que desciam e subiam sem parar
Incansavelmente
E incansavelmente
Não parava de me perguntar:
- Por que é que não param de dançar?
- Não se cansam de pular?

Hoje, velho
As ondas estão nas rugas de meu rosto
Impossibilitado de andar
Não vejo mais o mar
E sei por que nunca para de dançar

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Com o Sol morrendo
Morre mais este homem
Voa o pardal

Iki

Iki dizem todos
Depois da corda
E despertam todos
Em alegria

Dale chico!

Calma! Calma!
No se puedes caminar!
El tren estás lleno
Y La puerta se cerrará!

Castelo de cristal

Todo homem
Constrói seu castelo
Cristalizando sangue, suor e lágrimas
Que se derrete num simples dia de verão

Quando o homem irá dar-se conta
Que a simples choupana de palha
É o seu melhor abrigo para a chuva?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Lição de poesia

Por que compor poemas
Que falam apenas da beleza
Escamoteando debaixo da mesa
Um suposto monstrinho de borracha.
Se para que a luz possa surgir
Também há de surgir a sombra
E todas as criaturas sinistras
E demais imperfeitas.
Um poema pode ser
Um lamento
Uma dor na ferida
Desilusão nesta vida
Pode ser o remédio que cura
Amarga poção
Que desce queimando
Garganta profunda.

Um poema não precisa
Ser bom
Sê bom em sua construção
Deve ser transparente
E somar todos os sentimentos
Daqueles que choram
Um desesperado
Consolo que nunca chega.

Em silêncio padeço

Nenhuma explicação é necessária
Quando o coração é grande
Assim as palavras perdem sentido
Como que atiradas ao vento
Sem nenhum proveito
Mas ainda que nada se fale
No silêncio da palavra não dita
Repousa uma pergunta
Que não cessa de perguntar
Cuja resposta silencia-se
Nos lábios que deixaram de falar.

Fuga no bailado

Chora por mim
Argentina!
Que a dama que baila
Tenta fugir dos braços meus
Que rodopia em seus sapatos
De bico fino.
Seu vestido colado ao corpo
Delgado como uma gazela
De rosto pálido e boca carmim

Chora por mim
Argentina!
Que a miséria te persegue
No subúrbio de Buenos Aires
De jovens enlouquecidos
Que não trabalham
Que não estudam
Que morrem entorpecidos
Da fumaça ácida dos cigarrilhos

Chora por mim
Argentina!
Porque o tempo passou
E não há mais motivo
Para sorrir.

Mas continua bailando
Para espantar o medo
Dos fantasmas do passado
Que novamente assombram
Os transeuntes de Corrientes.

Quando inútil se torna

Como que o tempo parasse
Por algum tempo
E nada mais acontecesse
Em nossas vidas inúteis
Que fosse realmente
De alguma utilidade.
Que futilidade seria
Empinar quadrados
Senão fosse apenas
Por divertimento.
Se um dia a vida
Servisse para alguma
Causa útil
Inútil seria compor
Poesias
Que de útil nada
Teria.
Se as revoluções
Fossem úteis
Não redundariam
Em fracassos.
Se o amor tivesse
Algo de útil
Não seria amor.
Nem a felicidade
Seria possível
Que de palavra bonita
Não passa de um projeto
Que não se realiza.

Mas infinitamente
Se vive
Na mais infinita
Inutilidade.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sem nada mais segurar

Em cada abandono
Mais a vida se amplia
Em cujo chão que piso
Não preciso de apoio.

Só preciso dos olhos largos
Da mulher que veste branco
A me dar o beijo frio
Em cada despedida.

Rodopia a dançarina
Numa caixinha de música
Que pára de rodopiar
Quando acaba a corda.

Para que chorar
A fuga do canarinho
Se nada pode ser
Definidamente prisioneiro.

Antes do temporal
Recolho nas mãos
As margaridinhas
De centro amarelado.

Passou Jurema
Passou Iracema
A vida passou...

O herói de minha vida

Nenhum drama se compara
Com o drama que acontece
Na vida irreal das aparências
Das formas e conteúdos
De uma vida vivida agora!

Só resta a beleza
Das contradições e sonhos roubados
De um herói que morre
No final.

Acima da nuvens

Mais vale um sorriso
Diante das intempéries
De um amor que se realiza
Apenas
Bem acima das nuvens
Onde o vento é mais ligeiro
Mais azul é o oxigênio
Mais fluido o pensamento.

Nas ondas mais baixas
Só se for um amor
Ainda impregnado
Da lama de um pântano
Que nunca deixa de produzir
Uma febre insana.

Mais vale um sorriso!

Felicidade fugidia

Felicidade é uma nuvem que passa
Passageira de um rabo de vento
Ligeiro às vezes
Demorado às vezes
Às vezes nem percebido
Perseguido e não encontrado
Fugidio diante de nossa vontade
De detê-la demoradamente
Em nossas mãos.

Mas o que as minhas mãos
Seguram?
Nem mesmo o vento!

Um amor de verdade

Dos amores sonhados
Sonhou todos
E quando acordou
Nada mais havia
Senão uma saudade
Imensa de uma felicidade
Que apenas foi sonhada.

Não queira mais sonhar
Fincou os pés no chão
E rogou:
Quero um amor de verdade
Pode ser gordo
Pode ser calvo
Pode ser feio
Pode ser aloprado.

Depois que este amor
Apareceu
Parou de sonhar:
Não se arrumou mais
E passou a viver
Com aquele como fosse
O mais esperado
Dos príncipes encantados.

Ao soprar do vento

Um guizo pendurado na janela
Anuncia:
Kin... kin...

E quanto mais o vento sopra
Fica no ouvido aquele som
Sempre igual
Sem nada inovar
Sem desanimar
Insistentemente
De maneira agradável
De imensa simplicidade
Uma música que nunca morre
Seja na tristeza
Seja na alegria
Seja no encontro
Seja na despedida
Toda vez que soprar o vento

Um guizo pendurado na janela
Anuncia:
Kin... kin...

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A tatuagem

Uma tatuagem não pode ser
Removida sem causar cicatrizes.
Uma tatuagem envelhece
Cada vez mais na pele
Impregnada de sujeira
Que por fim definha
E toda ilustração
Antes bela cada vez mais
Velha há de se tornar.

O esquecimento

Acontecimentos que quero
Esquecer de uma só vez.
Só fica a minha vontade
Sem importância alguma
Se a vontade do esquecimento
É a de não ser esquecido.

Chove lá dentro

Nas águas que descem
Quero me afogar
Chuva que chove devagar
Além das persianas de minha janela
Além das pestanas de minha face
Assim serei liquefeito
Desmanchando toda mágoa
Que carrego numa bolsa abaixo
Dos olhos em que navego.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Os demônios vulcânicos que não passam

Como posso me livrar dos demônios
Do passado
Se constantemente surgem do nada
Com suas caras maravilhosas
Bovinas e transparentes como vidro
Refletindo a minha cara
Refletindo todas caras que passaram
Pela minha vida
Eu também a vida de todas elas
Com toda insanidade do fogo
De um vulcão derramando pela borda
Uma lava que a tudo transforma.

Certa vez visitei o vulcão de Asso
No arquipélago japonês
Queimava enxofre que nos pulmões
Queimava mais ainda
E lacrimejava as pupilas vermelhas
E vi o inferno fervendo abaixo
Em rios que a tudo queimava
E queimou a minha alma
Mas nunca o vulcão explodia
Mas fervia sem que ninguém
Pudesse ver
Por um momento pensei:
Sou vulcão que vive
Em terras em que não nasci
Sou o vulcão que internamente
Um caldeirão cheio de metal derretido
Não pode mais esfriar.
Esta é minha condição
Combustível desta existência
Que acende uma lamparina
Perdida na escuridão.
Mas não clareia tudo
Esconde mais do que revela
E nas sombras se mostra
Toda a beleza e feiúra.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Começar de novo

Pouco me importa se as ruas
Estão sujas
Se meus sapatos furaram
Se minhas calças puíram
Nada mais me importa
Realmente
Senão uma barra de chocolate
Amargo
Para iniciar uma caminhada nova
Não muito diferente da antiga
Em repetidos tropeços
Em volteios repetidos
Como redemoinho
Um biruta ao sabor do vento.

A linguagem do silêncio

Nenhuma afirmativa pode ser
Conclusiva
Pois nada explica
Aquilo que explicação não havia.
Se explicação fosse necessária
Se alguma palavra dita fosse possível
Ainda assim
Nada se comparava com o silêncio
Que diz tudo
Sem palavra alguma.

Há um tempo que
Por uma necessidade desenfreada
As palavras dizem a verdade
Que somente as palavras podem
Dizer.

Há um tempo que
Nenhuma palavra mais serve
Para compor um sentimento
Pois sentimento algum cabe
Dentro de uma palavra.

Quando as palavras cessarem
De seus significados mais lestos
Então somente os sentimentos
Mais verdadeiros do que qualquer
Palavra reinarão entre as partes.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Olhos que acendiam

Aqueles imensos olhos
deixaram de brilhar
para que pudessem ver
sem os colírios da ilusão.
Meus olhos um tanto pequenos
não precisam de colírio
para ver na ilusão
com tamanho brilho.
Faíscam a cada momento
por desespero de um amor
perdido.

Poema para ser esquecido

Compor poema
só se for nas areias
de uma praia solitária
só para as ostras e caranguejos
apagado num instante
pelas ondas em rebentação.

Um poema
por mais belo que seja
pudesse ser apagado em seguida
para que a vida desse
vida em cada despedida.

Nenhum poema
deve ser declamado
mais de uma vez
Nenhum poema
deve ser lido
mais de uma vez
para que outro poema
seja em seguida.
Um poema só se eterniza
no momento que é escrito.
Se o poema é de Eliza
que Eliza seja eterna
nas mãos do poeta.
Mas se for de Fabiana
de Ana
de Marialva
ou Suzana pouco importa
o nome
o sobrenome
que seja aquela que no poema
se faz.

Letargia dos dias sem fim

Com imensa letargia os dias avançam
nos primeiros dias de janeiro.
Por algum tempo os ventos da calmaria
não fazem mover moinhos.

Diante de mim uma imagem de Buda
calmamente me vislumbra
num sorriso que acalma e incomoda.
Sorriso de bronze que permanece
pela eternidade assombrando.
Nada mais importa neste momento
se vier a morte que seja branda
como a poeira que se assenta e levanta
pelo chão de madeira carcomida.

Os amigos que tive ontem
seguiram seus caminhos
Os amores que tive ontem
distanciados em gelo ficaram
Nem mesmo uma lembrança
restou senão as ruínas de um terremoto
que continua causando sinistros.

Por um momento apenas o silêncio
das paredes impregnadas de fuligens
dos incêndios que trouxeram abaixo
os sentimentos mais baixos da esperança
perdida numa batalha sem causa alguma.
Ainda que nenhuma causa seja aparente
o corpo dolorido pelas chuvas da estação
quer descanso numa cabana solitária
distante das vozes atravessadas
das baitacas em festiva festança.

Assim que a noite se debruça
as estrelas são companheiras
faiscando uma energia que não acende toda
a imensidão deste lençol em furos.
Assim beberei da lua todo seu mel
e embriagar-me-ei como um tolo
que satisfaz ao rir de si.
Dos vapores que se assentam farei meu leito
para acalentar em sonhos
esta vontade imensa de continuar sonhando
antes que lá adiante ofusque uma luz incômoda
do sol que mais engana
do que as noites de insônia.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O homem que carregava

Subia, todo dia
Após descer
Naquela melancolia
Carregava aquele carro imenso
E me dava impressão que era para se comparar
Ao cristo salvador
Que também carregou o homem

Mas aquele homem que não carregava homem
Descia e subia todo dia
Carregando metal
Papelão, jornal
Sem distinção de raça, credo
Só carregava
Subindo a ladeira
Com a esperança de um dia
Se salvar e salvar à todos

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Tudo se tornou metal

Um sininho tocava
Metalicamente
Blem blem...

Metalicamente
Os corpos se mexiam.

Metalicamente
Se vivia nestes tempos.

Tempos metálicos
Em que não se sofria mais
Pois os corações metálicos
Estavam protegidos
Dos agentes externos
Que internamente provocariam
Ferrugens.

Assim todos estavam salvos
Neste mundo metálico.
Mas o que poderia nos salvar
Do metal que tornou nosso coração?

Talvez um pouco de oxidação.

Um inquietante calor

Trata-se apenas de inquietações
Que corrói fundo este corpo em brasa
Uma necessidade de inundar com suas águas
As planícies de um arrozal em pencas
Que diante do sol começa a amarelar.

Não se pode aquietar
As lavas que vertem das paredes
De um vulcão prestes
A qualquer momento
Tingir o céu de rubra cor
E o azul será tingido
Em infinitas pinceladas.

Sou uma montanha que finge
Que dorme
Que dorme também
Toda minha dor.

O bloco de notas

O “bloco de notas” é uma das condições essenciais para fazer qualquer coisa de válido.
Habitualmente, este bloco só é mencionado depois da morte do poeta; durante anos arrasta-se no pó, é publicado com as obras póstumas e muito depois das “obras terminadas”. Mas para o escritor, esse bloco é tudo.

MAIAKOVSKI. Vladimir, Poética – como fazer versos, São Paulo: Global Editora, 1991, pp.24,25

Sensation

Je ne parlerai pas
Je ne penserai rien.
Mais un amour immense
Entrera dans mon âme.

Arthur Rimbaud

Sonhos da ascensorista

Em carreira meteórica subiu na vida
Todo dia subia trinta e três andares
Dentro de uma caixa metálica
Anunciando cada andar que parava
Serviços médicos e dentários
Salas de advogados e produtores de imagem
Imagine aquela mulher vinda do sertão
Acabou por conseguir uma vaga
De ascensorista de um prédio na Paulista
Como uma comissária de bordo
Uniforme completo azul celeste
E lenço amarrado no pescoço
Não usava luvas
Os olhos levemente pintados a rímel
Uma boca suavemente cor de rosa
Sua pele queimada pelo sol
De outras terras dos canaviais
Quando terminava o turno da manhã
Retornava para casa
Mais de duas horas de coletivo
Com baldeação em Santo Amaro
Levando no rosto o sorriso
De serviço realizado
Quando tirava férias queria voltar logo
Voltar a subir rapidamente
Para o ponto mais alto
E de lá vislumbrar a cidade toda
Que era sua
Um dia teve que se aposentar
Nunca mais tomou um elevador
Nunca mais retornou onde trabalhou
Quase a metade de sua vida
Nada mais sabia fazer do que
Subir os trinta e três andares
Num passe de mágica
Num aperto de botões
E comandar a vida de todos
Passageiros
Numa viagem de primeira classe
Por alguns minutos
Alguns minutos suficientes
Para fazer dela
A dona do destino
Para o ponto mais alto
Para o ponto mais baixo
Subindo e descendo.
Um dia deixou de subir
E em seu lugar apresentou
Sua filha mais nova
Que passou a fazer o mesmo
Que sua mãe fazia.
Subir na vida!

As prisões de janeiro

Algo de estranho acontece em janeiro
Algo de totalmente inerte em corpo fechado
Nem chega a incomodar a chuva
Nem o vento sopra mais como antes
E o tempo fechado dorme pela tarde adentro.

Uma incerteza ainda acontece esparramando
Caudalosamente pelas ruas uma bruma quente
De um sopro que vem de dentro
Das frinchas de um mármore eterno
Que resiste a qualquer molde do formão.

Com lentidão a roda do moinho se move
No embate das serrilhadas roldanas
Rebentando as nozes de suas carapaças
Duras como as cascas que nos envolve.

Por um momento o ser da morte
Descansa com a esperança de novamente
Repetir o movimento de sempre
Sem hesitação de trás para frente.

Sem conhecer a liberdade
Apenas continua a esmagar
Com os pés nus a uva do tempo.

Sem conhecer a liberdade
Esmaga com os próprios pés
Qualquer possibilidade de amar.

Com o tempo que passa
Cada vez mais resistentes são
As correntes presas nos pés e nas mãos.

domingo, 2 de janeiro de 2011

A verdade do poema

Que diferença pode haver
Entre o poema escrito neste momento
E a vida vivida no instante do agora?
Se a vida é vivida dentro do poema
Que me importa aquilo que se forma
Fora dele.
Se realmente se escreve poema
Sem nenhum conteúdo de vida
Deixa de ser poema.
Se um poeta não vive o poema escrito
Deixa de viver a vida vivida
Pois poema não prescreve da vida
E viver poeticamente
Viver intensamente a vida presente
Com sua mais extrema contradição
De uma luz que pisca na escuridão
De uma beleza na maior das feiúras
De uma tristeza imensa
Que jaz diante de uma cabana
Perdida no deserto de nossa existência.
Compor é viver
Somente os poetas podem falar da vida
Pois viveram suficientemente todas as dores
Dos desencontros das almas queridas
Mas ainda podem sorrir
De pura ironia
Seu próprio desprezo pela seriedade
De uma vida vivida pela metade.

Um caso de amor

Desde que a conheci
Nunca mais ela me deixou
Meio tímida foi chegando
E de maneira singela
Estendeu seus braços de polvos
Sufocando-me de tamanha emoção
Nunca conheci ninguém igual.
Chama-se Hipertensão.
Conheci muitas
Algumas foram especiais
Algumas foram esquecidas
Algumas tentei esquecer
Foi em vão
Mas Hipertensão
Esta veio para ficar.
Ainda que me esqueça dela
De mim ela mais se esquecerá!

O cigano caminha

Pudesse ser como um cigano
Sem amarras com nenhum ser humano
Como este que me encontro
Pelas ruas de meu bairro.

Nem seu nome sei
Nem sei onde vive

Mas por onde passa brilha
Seus colares de matéria plástica
Seus óculos sem lente alguma
Seus lenços coloridos.

Um demônio errante caminha
Um santo também caminha
Uma freira
Uma faxineira.

Mas por onde passa brilha
Meu amigo cigano!

O esquecimento do eu

O instante do auto-esquecimento, no qual o sujeito submerge na linguagem, não consiste no sacrifício do sujeito ao Ser. Não é um instante de violência, nem sequer de violência contra o sujeito, mas um instante de reconciliação: a linguagem fala por si mesma apesar quando deixa de falar como algo alheio e se torna a própria voz do sujeito. Onde o eu se esquece na linguagem, ali ele está inteiramente presente; senão a linguagem, convertida em abracadabra sacralizado, sucumbira à reificação, como ocorre no discurso comunicativo.

ADORNO. Theodor, Notas de Literatura I, São Paulo: Livraria Duas Cidades, Editora 34, 2008, p. 75

Sem mudança alguma

Novos tempos chegam
Ao alvorecer do Ano Novo
Nada de novo mais
Do que um dia após o outro.
Naquele vão do viaduto
Naquele mesmo canto
Um casal de mendigos
Que sempre morou
No mesmo canto
Continuam morando
Como nada realmente
Mudasse.

Um casal de mendigos
Que sempre morou...

Retorno à terra natal

Quando retorno ao passado
Retorno à minha terra natal
Em que não reconheço mais
As ruas em que andei a procura
De qualquer sinal de minha existência
Senão uma rua que não existe mais
De uma poeira que foi varrida
De uma memória esquecida
Por não fazer história.
Somente meus pais me esperam
Com saudade do filho que se foi
Se fazer em outras terras
Apenas o aconchego de seus corpos
Esmaecidos pelo tempo
Duros o ano inteiro
Me abrigam por um momento.
Quando o Ano Novo se faz
É tempo de se recolher
Nos porões profundos da memória
Tão profundos que nenhum luz
Pode se encontrada.
E como é agradável
Fechar os olhos e ver.

Rodopiando na roda-gigante

Num desses parques de diversão
Certa vez vi um na Amazônia
De minha infância havia muitos
De minha cidade natal
Havia lá num canto a roda-gigante
Nem tão grande assim
Sem nenhum charme de outrora
Sem charme algum
Velho e carcomido pelo sal
Da maresia que vinha com o vento
Desta vez era véspera de ano novo
Não uma data qualquer
Mas fiquei com uma vontade imensa
Na roda-gigante girar por um instante
Um pouco que fosse seria o suficiente
Fiquei de longe espreitando
Se ia
Se não ia
Rodar na roda-gigante que lá de cima
Enxergaria toda a cidade e o mar e as montanhas
Poderia ver o mundo de uma outra forma
Em panorâmica que jamais se veria
Se não fosse a mágica da roda-gigante.
Mas meus pés fincaram raízes
Nenhum avanço se deu
Em direção da roda-gigante
Que rodava
Que rodava
Os olhos que rodavam
Sempre em redemoinho
Num sonho rodava
Por um momento rodava
Por uma vida inteira rodava
Como que nunca mais fosse parar
Rodava como a própria vida rodava
E como invejei aqueles que rodavam
Na roda-gigante
Entorpecidos que estavam
Por uma felicidade momentânea
Por um momento eternizado
No rodar apenas
Da roda-gigante.
Quando parou ainda a felicidade
Existia no rosto daquele homem
Que rodou sem medo algum de enlouquecer
No rodar apenas
Da roda-gigante.
Daquele que ficou fora
Com medo de rodar
Rodopiava como pudesse ficar
Fora da roda-gigante.
E rodopiou junto
à roda-gigante.
Os rojões explodiam anunciando
Ano Novo!
Tudo mudou
Ao rodar apenas
Da roda-gigante.

Uma vida passageira

Tudo passa
O ano velho passa
Uma mulher gorda passa
Uma mulher magra passa
Todos os sonhos passam
Menos passa esta dor no pé direito
Que me visita três vezes por ano
E deixa um rastro de um passo
Arrastado num chinelo quase sem sola
Se a uva passa fosse apenas passado
O que passa neste coração maltrapilho
Que nada mais aprendeu
Nesta vida revirada e mal vivida
Que passou num instante...
Por isso gostamos dos filmes antigos
Daqueles em que as loiras falsas
São mais verdadeiras enfiadas
Em suas saias rodadas.
Um filme passa
E sentimo-nos felizes
Como se passasse ainda diante
De nossos olhos extasiados
Com vontade de abarcar o mundo
De um sonho que resiste em passar inteiro
Que nunca termina
De um filme
Que nunca termina.