segunda-feira, 3 de maio de 2010

O iluminado

Olhar de longe a lona do circo, perfeitamente esticada, era um presságio. Chegar perto, reunia o tempo. A urdidura à mostra em vários sítios parecia ir-se desmanchar nos olhos. As cores: o vermelho, o amarelo e o azul, só eram vistas na memória. Mesmo assim, todo este palácio nômade, como uma pele esticada em ossos pontudos, resplandecia ao sol. O cheiro dos animais vindos de outros continentes era a glória para qualquer um que viesse. Era como chegar antes de chegar, ser tomado por aqueles seres, puros, selvagens, antes de possuir suas formas.

E haviam mastros altíssimos a se perder
e cordas cobertas de couro e betume
suspensas numa altura estonteante.
E havia o equilibrista em roupas justas.

Lá fora o sol quarava as poucas nuvens
Mas no interior do circo o lusco-fusco durava.
Furos no teto de pano criavam corpos celestes
e quase a toca-los, ia o equilibrista sem olhos.

Lá embaixo, a platéia era como pedra
Ninguém quereria jamais trocar de lugar
com aquele das alturas sem rede de amparo.
O silêncio arrastava, cortando a pele do tarol.

O equilibrista tinha as mãos trêmulas.
Esticava as cordas que seriam seu caminho
como se começassem de suas próprias entranhas.
Nem parábola, nem reta demais — os pés sabiam.

Ao atravessar a corda que unia os mastros gigantescos, usava uma vara de bambu que era o dobro de sua altura e dez vezes menos o seu peso. Os pés como casulos em sapatilhas de couro macio, faziam cair, lento, pó de breu, à medida que avançavam. Na travessia, a cabeça calava. Os pensamentos cortavam na velocidade de coriscos para irem sumir depois do horizonte daquele espaço particular, que é a mente. Intangível.

A venda nos olhos, os olhos fechados
Os olhos dos pés, os pés na corda - bamba
Pender para a esquerda faria o mundo da direita transbordar
perder para a direita faria cair o mundo do outro lado também.

Era uma visão trágica mas das mais belas
Corriam lágrimas, é natural, olhos ao alto
e lá no centro, quase imóvel: o ser partícula e seu bambu
virando uma coisa só nos olhos embaçados

O que ninguém poderia pensar naquele momento é que ele, o equilibrista cego, sem as vendas daquela profissão, via, com seus olhos, tudo, sim, muito claro e colorido, em todas as miríades de tons e contrastes e profundidade. Também não poderiam imaginar que ele fosse casado com a domadora de cavalos e que tinham filhos.

O equilibrista sabia o fim de todas as coisas:
a morte. E era isso, o fim do tabu, do desejo
sim, era o abandono, de tudo, a tempo
Mas quem saberia vê-lo assim? Sem medo...

Lá embaixo o público sonhava
deixando os olhos vidrarem - e o coração subir, lento
estavam livres, desprendiam...
Apenas um, sem olhos, nas alturas.

Aquele instante era nunca
O inverso de milhões de anos
cada passo um desequilíbrio
cada suspiro um alívio

Alguns viam uma cruz de prata ofuscante
outros uma estrela iridescente
mas lá no céu do circo era só o homem
um homem pendurado numa linha

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