segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A história de meia vida

A cada dia de vida João colocava um tijolo no monte
Sem deixar passar um dia se quer
Os tijolos foram amontoados
E como não podia ser diferente
Um dia ele parou e reparou
Que na sua frente havia erguido um castelo

Chegava a ser assustador
João tinha medo de sua própria criação
De entrar e não saber o que encontrar
De deixar tudo o que conhecia do lado de fora
E passar pela porta sem ao menos olhar para trás

De forma tão repentina
Aquele sonho se transformou em realidade
E logo em incertezas
Que o apavoravam

Mas apesar disso
Muito estava em jogo
Não só para ele, mas por todos

Então, sem estremecer
Muito menos exitar

João se foi

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Acabou

Os livros se esgotaram
As palestras se encerraram
Os professores foram demitidos
As escolas fecharam
Os cursos foram concluídos
E os debates se calaram

Não há mais lugar para eu buscar
Não há mais lugar para eu fugir
Do real aprendizado
sentado

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Varais coloridos

Acima daquela linha da cidade
As pessoas penduram suas roupas
Coloridas
E outras descoloradas
Num varal em frente das casas
Sem pudor algum
Como tudo fosse permitido
Por um momento pensei
Usar roupas coloridas
Não ficaram bem!
Nunca fiz parte daquele mundo
Foi tão somente um delírio
Pois não posso ser alguém
Com camisas amarelas
Calças azuis.

Minhas roupas sempre foram
Negras.

Nada mais sobrou da areia

Tudo passou como tempestade
Deixando pelo caminho coqueiros pelo chão
Tudo foi destruição
De um castelo de areia
Que parecia indestrutível
Uma fortaleza em que o menino
Construiu com outras mãos
Pequenas de uma menina.

Nada mais sobrou
E a menina se foi
Brincar em outras praias.

Nunca mais se ouviu falar dela
Mas o menino continua ainda
Construindo castelos de areia
Mesmo sabendo que a qualquer momento
Vem uma onda maior
E nada mais sobrará
Nenhum castelo
Somente areia
Como sempre foi...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Um sorriso endurecido

Quando o sorriso não sai
Senão uma expressão apenas
De uma dor escondida por detrás
De uma face que não esconde mais
Tamanho desalento
Continuamos fazendo de conta
Que nada mais nos afeta realmente
Que nada tem importância mais
Que tudo mais não passa de passatempo
E passado para trás já fomos
Com outros igualmente perdedores.

Se ainda assim o sorriso surgir
Será menos de alegria
Será de saudade de um dia
Ter conhecido Mariana.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A chuva

A chuva é o choro do mundo
Choros de alegria e tristeza
Que alimentam os vegetais
E banham os animais

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O diabo e o sexo

foto: Bruno Mitih

Casa de Moacir, artista nativo da cidade de São Jorge, interior de Goiás. Tem como temas centrais religião, sexo e demônios.

Pessach

O que se passa
Quando aquilo que passa
Passa sem pedir passagem;
Passa sem sobre passo
Sobre um passageiro
Que, de tantos passos,
Tropeçou no calço
Quando, no encalço do tempo,
(Que passava apressado)
Observava a paisagem
Passando despreocupada,
Como sinfonia de um compasso
Que gira, traço após traço,
Um mundo tão abstrato
Que parecia nunca passar.

O que se há de passar
Quando todo esse espaço
Infinito porém escasso
Eterno, conquanto fugaz.
Quando todo esse paradoxo
De uma eternidade passageira
Que relutamos em aceitar
Finalmente resolver passar?

Sem olhar

Me embriagando da cor da uva
No céu pintado, percebido de repente
Num mundo frenético
Que nem sequer olhava
Aquele rubro cair solar
Nem sequer olhava
A nuvem dançando
Nem sequer olhava
Um pássaro pousando
Nem sequer olhava
O dia passando

Comparar e sentir

Ver e olhar
Sentir
Viver é, único momento
Impossível de ser achatado
Em palavras, curtas e insignificantes

Palavras são comparadas
Em seu universo dual
Vivências são comparadas
Em um limitador dual

Neste poema em caso
Limitador fenomenal
Da vivência

domingo, 5 de dezembro de 2010

Um presente de aniversário

Que posso lhe dar
Se não nada mais tenho
Tenho amor em meu coração
Nada muito interessante
Tenho um desespero inquietante
Nada muito interessante
Posso revirar meus bolsos
E tirar lá do fundo
Um mundo inteiro que inventei
Figurinhas do mundo animal
Uma vassoura de bruxa em miniatura
Uma moeda furada que nada vale
Um pedaço de rapadura.

Tudo isso posso lhe dar
Com todo o encantamento
Que ainda ofusca meus olhos
Enche um alforje que levo a tiracolo.

Que passa em minha frente

Cada vez que me encontro
Com as mulheres que conheci
Cada vez mais o devaneio se esvai
Como uma névoa que sobe e passa
Toda beleza se fora em instantes
Toda formosura não passa de uma lembrança
Melhor se fosse se não as encontrasse mais
Mas ainda assim não seria uma solução
Pois também a frescura de minha idade
Não passaria de uma ilusão.

Contando os dedos

Amigos
Contamos nas pontas do dedo
Assim disse certa vez um amigo.
Cada vez mais
Os números diminuíram
Sem que os dedos diminuíssem.

Para não desesperar
Cortemos os dedos
Ou paremos de contar.

Tomando bebedeiras

Meu amigo mais velho se foi
Tomou todas as bebedeiras
E não se arrependeu!

Nunca tomei bebedeiras
E continuo vivo
Apesar da hipertensão
Apesar do colesterol
Mas me arrependo
De não vivido ainda o suficiente.
Como invejo meu amigo mais velho
Só meus versos me consolam...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Apenas um único caminho

Nenhum caminho conduz
Naquilo que possa negar a vida
Pelo contrário todas as vidas
Caminham juntas em cruzada
Ainda que possam dizer o contrário.
Neste derradeiro caminhar
Nunca avançamos
Nunca recuamos.
Sem que pudéssemos dar
Um passo sequer
Onde o caminho não leva.
Caminhamos juntos
Sempre na mesma direção!

Calar é preciso

Quando as explicações são precisas
Toda confusão também é possível
Se as palavras não conseguem expressar
Um emaranhado de pontos vermelhos
Num céu infinitamente azul.

Algumas coisas não precisam
De explicação que nada explica
Além de dizer o mais obvio
Das futilidades.
Mas quando se cala e sorri
Nada mais diz
Do que toda a verdade
Que não necessita de explicações.

Um total desconhecimento

Quem diante de mim se encontra
Se nunca te encontrei antes
Se nunca te vi antes
Mas seu sorriso parece ter sentido
Em outros momentos vividos
Num sonho qualquer
De outro que tenha sonhado.
Nem sei como se chama
Como se a chama se incendiasse
Em instantes sem provocação
E reconhecesse um pouco que fosse
De uma emoção que se fora
Soprada em direção em que
Não mais me encontro.
Se uma alegria momentânea
Me assalta a alma desarmada
Em seguida uma tristeza profunda
Inunda toda experiência
Das emoções sentidas.

Quem diante de mim se encontra
Não sei seu nome
Mas seu sorriso...

Simplesmente fazemos

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Todas as pedras levadas morro acima
Todas as tardes sem que um minuto sequer
Parasse de mover as pernas
Seria a prova de fraqueza
Diante das incertezas
De um trabalho inútil.

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Como inútil podia ser o vôo do pássaro
Que cruza num instante o cinza do céu
Como inútil podia ser a dança flamenga
Numa tarde ensolarada
Numa taberna à beira da estrada.

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Os amores vivenciados não deixam saudades
Que se apagam no passado
Os rastros que se perdem na água
Do pato que nadou neste instante.

Bem que ouvi mas não dei ouvidos.
Se nada disso fizesse
Todas as coisas inúteis
Teria-me esquecido de viver.

Das águas profundas

Desconheço totalmente o que se oculta
Abaixo das águas profundas de um poço sem fundo
Que existe no quintal amplo de minha existência
Quisera me perder num salto sem retorno
Mas meus pés não cedem um milímetro sequer.
Não por falta de coragem
Apenas pelas amarras que me atam
Numa emaranhada trama da vida
Em que sou apenas figurante.
Mas quanto mais me afasto daquele lugar
Mais me encontro em lugar algum
Por isso continuo a viver fora das águas
Ansiando todavia escorregar água adentro.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O urubu

Mamãe, quando eu crescer quero ser um urubu
Ser a sombra negra de asas abertas lá no alto
Ter a morte como vida e a vida, como morte
Ser o verso brutal da ausência
que a tudo espia lá do céu
E em círculos, ser a espera
a espera do inevitável, o certo.

Mamãe é isto o que eu quero ser,
a sombra magra de um anjo
Quero ser a noite estampada
na face luminosa do céu risonho
Ser o amor universal
pairando sobre o destino grato

Mamãe, isso é tudo,
mas se isto eu não for
e me acontecer de ser poeta
por favor me aceite

Esquelético e de andar desequilibrado.
Com a voz louca de milênios de gerações doentias.

Solitário no interior do ovo cósmico,
a estremecer com a explosão da energia galvânica
e a cegar com a luminosidade
nauseante dos raios gama.

Deixa-me perdido, e aflito,
Deixa-me entristecido assim para eu ser poeta

⎯ Poeta Grande


(homenagem a Augusto dos Anjos)








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