domingo, 31 de janeiro de 2010

Louvor a Santa Misericórdia

Oro pela santa
Santa Misericórdia
Que a nós acuda
Nestes momentos atrozes
De falta de ânimo
Do amigo que se foi
Do tempo que se foi
Do amor que ficou
Envelhecido demais.

Se tivesse cura para desatino
Se precisasse tomaria todo o
Atlântico de uma só vez.
Mas o que preciso
É que ficou perdido
A agulha da bússola
Na travessia do Equador.

Sem rumo certo
O que me leva direto
Ao vôo livre da imaginação
De um salto sem regresso
É sol em insolação.

Por isso peço
Santa Misericórdia
Não permita que este
Filho de mãe parida
Perca-se nesta vida inútil
E bem vivida
E de trilhas não abertas!

Um palhaço que ficou sem graça

Quando um incômodo nos assalta
A alma, o que podemos fazer
Além de rir das representações
De nossa vida cotidiana.

Somos palhaços quando queremos
Ser sérios.
E escorregamos nas cascas de banana
Atiradas do alto do edifício.
E escorregamos nas palavras
Empoladas que desconhecemos o sentido.
Mas mesmo assim, continuamos representando:

Um dia fui Zé
Mas Zé não existia?
Um dia fui Altair
Mas Altair não existia?

Fui jogador de futebol, de beisebol, de handebol
Fui pequeno e grande, tolo e inconseqüente.
Fui padre, o pastor, o santo e o demônio.
Fui artista de circo, sim senhor.
Fui acima de tudo palhaço
Que mudava de cara:
Arrelia, Pimentinha, Carequinha, Chicharrão.

Um dia resolvi tirar a pintura
Vi pela primeira vez minha cara
Que cara sem graça.
Sem pintura, sem nada.
Igual a tantas outras caras.
Percebi que tinha a cara do mundo.
Que pode ser tudo.
Pode ser nada.

E ri pela primeira vez
De minha vã filosofia.
Não tenho nome
Nem qualificação
Sou aquilo que quiserem que seja
Sou água
Sou pedra
Sou a vida
Sou a morte
Sou a palavra na boca dos desvairados.

O que podemos ainda ser
Se dos palhaços ninguém mais ri
O que resta do palhaço
Em sua calça balão?.

Vida


Vida vivida

Não é vida perdida

Vida perdida

É vida sofrida...

Vida arrastada

Mole, abatida.

Vida vivida

Euforia da ida

Vida perdida

Vida fedida

Vida sofrida

Que mórbida vida!

Quem vive a vida

Não sente a ferida

Que arde, doída

No fundo da vida

Deus que me livre

Da vida fedida

Da vida perdida

Da vida fodida

De toda não-vida.

Soprava o vento pela fresta



Soprava o vento pela fresta
A menina comia nêspera
Antes de dar em segredo
O níveo corpo ao folguedo:

Mas antes provou ter tato
Pois só o queria nu no ato
Um corpo bom como um figo
Não se vai foder vestido.

Para ela em tempo de ais
Nunca o gozo era demais.
Lavava-se bem depois:
Nunca o carro antes do bois

Bertolt Brecht
Ilustração: Pablo Picasso

sábado, 30 de janeiro de 2010

Sem dono


Cachorro da rua que passou a integrar o grupo de caminhadas esperando fazer parte da "matilha", assim, ao final do dia sempre havia alguma comida para ele. Foto: Bruno Mitih - 2010

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Alma submersa

Em instantes chega perto
Acariciando a fronte que sua
Cálida mão do vento e enxuga
Inquietações que afloram
De um pântano que não suporta
Todas as rãs num tom só
A coaxar desesperadamente.

Outrora deste mesmo tanque
Batráquios faziam a festa
Mergulhando suas caras
Ao fundo no barro caldaloso
Ao fundo fugindo da luz da lua
Que refletia entrecortada ela.

Por um longo tempo cessaram
As vozes, todos os saltos e quedas
Sensacionais que eram no passado.
Mas não se pode fugir simplesmente
E a mente novamente em explosão.
Quando o corpo definha mais forte
Fica aquela
E novamente surgem mostrando
Olhos, olhos esbugalhados de espanto
À noite coberta de estrelas argentinas
Ofuscando no horizonte infinito.

Houve um momento
Que compunha por ingenuidade.
Perdida esta uma vez
Componho apenas
Pela crença da
Ingenuidade que não se perde
Jamais.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Caneca de sabão

Uma caneca de sabão
Pode ser qualquer outra coisa
Ser aquilo que jamais se pensou
Que fosse.
Fosse uma nuvem carregada
De eletricidade.
Fosse uma garça branca
Estendendo asas.
Só não precisaria
Ser o que o senso comum
Convencionou que fosse.
Uma caneca de sabão.

Fuga

Vou fugir de casa, bater em retirada
Ou queima-la, ao som de Bach, metido num kimono
como fez Tarkovsky em O Sacrifício

Vou, com todos o bichos e plantas, e tudo mais
perambular no abandono, abandono sem fim...
Vou andar de quatro por aí a cheirar frestas
Saltitar em pernas magrelas a favor do vento em busca
de migalhas fujonas,
mijar nos muros caiados e abanar a calda para o
primeiro que se aproximar.
E olhar de lado só porquê é assim que sei, só.

Evacuar enquanto sorrio para ti, depois de rodopiar
de colo em colo com minha grande fralda branca
Babar banguela com os olhos vidrados num patinho de borracha
e saltar de banda, como elástico, com meu corpo de pelo raiado.

Tenho ainda o firme propósito de seguir o caminho dos meios-fios
de São Paulo, até onde eles derem, até o fim, fim do fim

Mas eu sei, eu sei, vou ter que voltar
Como aquele que desistiu do suicídio porquê era a hora da janta
e então encontrou a esposa em casa, a sua espera,
com uma bela sopa de aspargos.

Depois de tudo e de todas as aventuras no caminho
sempre há esse retorno à casa, sempre
Seja qual for a forma ou a cor do percurso
No meio das linhas curvas há sempre pontinhos
e esses pontinhos são as vezes que tive que voltar para casa. Paciência.

Cafezinho


No bairro Belém, São Paulo, morador de rua espera por um cafezinho. Que lhe será servido numa garrafa plástica de água mineral. Foto: Bruno Mitih - 2009

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Oração ao Haiti

Ai, que havia alí no Haiti
De suas mulheres negras
Que choram agora seus
Maridos que pereceram
Filhos que se foram
Carregados pela asa do vento.

Num tremor avassalador
Corações que tremeram
De horror
Da natureza se revoltando
Por alguns segundos
Poucos segundos
Foram suficientes...

Daquela terra de vudu
Nada resta mais
Do que orar pelos vivos!

Ser vulcânico sou

Penetro fundo sua essência
Penetro pelas ventas que sopram
Fumaças negras vaporosas
De uma lava incandescente
Que queima arde e machuca
Lambe a ferida mal curada
Da última batalha dada
Aquiles com total selvageria
Queria raptar a mulher que amava
Se milhões matasse nada faria
A tropa armada de lança e espada.

- Queimando em febre insana
Ser vulcânico sou.

Alimento-me dos sonhos
Desses estranhos estrangeiros
Que foram distantes
Distantes e próximos.
Em viagens em que perdi
Minha alma se existia uma
E ganhar a liberdade
E errante avançar sem medo algum
Sem medo de errar
Minha vida errante
Por caminhos novos
Que somente meus pés caminham
Sem calçado sem sandálias
Toda a eternidade sem se deter
Pois sou o silêncio na boca dos mágicos.

- Queimando em febre insana
Ser vulcânico sou.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Seres da noite

Por detrás de toda insensibilidade
Que pode ser mais insensível
Do que domar os demônios
Que moram em meus olhos
Sem forças que serão deles?
Sem força que será de mim?

Não se trata disso
Muito mais aquilo que disse
Uma sombra sinistra que visita
Silenciosamente minhas noites
- Não vá na contra-mão
Não resista ao acalanto suave
Daqueles que habitam
Os poros da transpiração.

Cães


Morador de rua, cujo nome já não me recordo (preciso anotar) adotou, junto com a companheira, um casal de poodles abandonados. A fêmea é surda e, segundo eles não pode ser operada, pois acabaria morrendo. Foto: Bruno Mitih - 2009

Poesia Maldita

Do movimento incessante das coisas sob as coisas. Sempre possível mais abaixo e ainda mais abaixo. De coisas sobre coisas, em camadas vítreas. Porque não? Toda a verdade: non-stop.

Ainda que aceita toda a moral, todo o medo. Muito além de qualquer forma estabelecida, petrificada, líquida ou pastosa. Saber nenhum outro que desconheça o movimento incessante do sangue e da linfa, da carne e dos sucos por detrás das armaduras, e é como dizer: se espalhando sobre as camisas branquíssimas de botão, cabelos grisalhos, cílios postiços e mundos cor-de-rosa. Íntimo por não saber. Inseparável sem escolha, de ácaros e de seres miseráveis, tão belos como embriões de Helicônias atlânticas e mesmo de seres como nós.

Com deboche, sem deboche, com cinismo, sem cinismo. Ir mais. Coragem suficiente para o olho (puro) que desliza em camadas cada vez mais finas sobre outras finas camadas. Tudo se igualando e igualmente ficando sem nome, e por osmose, em estrita comunicação, sendo o movimento a expressão máxima e mínima, a verdade: caos-imaculado - de onde emerge o olho do umbigo e acende o um de todos.

Quem é o poeta?

No entanto, o que constitui o poeta é precisamente o fato de suprimir em si próprio tudo o que lembra um mundo artificial, de saber novamente produzir em si mesmo a natureza em sua simplicidade original. Mas se fez isso, também está livre de todas as leis mediante as quais um coração desencaminhado se protege contra si mesmo. É puro, inocente, e o que é permitido à natureza inocente, também o é para ele; se tu que o lês ou ouves já não és imaculado e nem podes sê-lo sequer momentaneamente mediante sua presença purificadora, a infelicidade é tua, não dele; deixa-o, pois, não cantou para ti.

Poesia Ingênua e Sentimental, de Friedrich Schiller.

Haicai

Janeiro perdido.
Sem me importar com o tempo
arrasto chinelo.

Difusão do Conhecimento Inútil

Ouvimos falar de uma Sociedade pela Difusão do Conhecimento Útil. Afirma-se que o conhecimento é poder, e coisas do gênero. Eu acho que existe uma igual necessidade de uma Sociedade pela Difusão da Ignorância Útil, o que chamaremos de belo conhecimento, um conhecimento útil num sentido mais elevado: pois o que é a maior parte do nosso tão vangloriado conhecimento, assim chamado, senão uma presunção de que conhecemos algo, que nos rouba da vantagem de nossa ignorância de fato? O que chamamos de conhecimento é geralmente a nossa ignorância positiva; a ignorância, o nosso conhecimento negativo.

De H.D. Thoreau, em Caminhando.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Falhar melhor

Em diante. Dizer em diante. Ser dito em diante. Dalgum modo em diante. Até de modo nenhum em diante. Dito de modo nenhum em diante.

Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito.

Dizer um corpo. Onde nehum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Parado.

Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.

(...)

--

On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.

Say for be said. Missaid. From now say for be missaid.

Say a body. Where none. No mind. Where none. That at least. A place. Where none. For the body. To be in. Move in. Out of. Back into. No. No out. No back. Only in. Stay in. On in. Still.

All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.

(...)


trecho do livro "Pioravante Marche", de Samuel Beckett

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Poesia Maldita

Talvez possamos recuperar este termo, no contexto atual, como sendo aquilo que não cabe mais no senso comum, entretanto faz parte do mundo, da cultura e da sociedade, isento de princípios morais institucionalizados. Ao contrário, maldito é o que aparenta imoralidade, pois contraria as convenções para revelar uma verdade subterrânea. Maldito liga-se à vida, no seu sentido visceral, baixo corporal, dos suores e gemidos, da dor diante da irrealidade do mundo sem valor algum, senão a da utilidade temporal de corpos e almas.

Num mundo cada vez mais desencantado, a prosa acabou sobrepujando-se ao verso, por isso a poesia desapareceu. Não que seja desta forma, a poesia está presente no delírio dos loucos e vagabundos, na esperança dos utópicos, no sonho dos românticos, na espiritualidade dos místicos e profetas. Outrora a poesia servia como encantamento, na transformação do mundo e do espírito. Curativo era. Um maldito acredita no poder curativo da palavra a fim de exorcizar o universo através da ironia fina, da ingenuidade reveladora, enfim da poesia nascida pela necessidade de expressão.

Jisho

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010



Contemplação da Lua

Acontece neste mês, dia 30, às 19hs, no Templo Busshinji, o encontro de haicaístas a fim de contemplar a lua, evento anual que comemora o aparecimento da primeira lua cheia de outono. No ensejo, nos primeiros 30 minutos, os participantes apreciam a lua e compõem haicais. Depois, reúnem-se e apreciam o trabalho dos outros, e escolhem o de sua preferência. Mais tarde, pode-se saber o haicai mais votado, bem como o autor que teve o melhor desempenho.

Evento que acontece anualmente no local, com o patrocínio do Templo Busshinji e do Grêmio Haicai Ipê. Aberto a todos, pede-se trazer papel e caneta. A única condição é que se componha haicai, cujo termo de estação (Kigo) seja justamente a lua cheia de outono.

Templo Busshinji: rua São Joaquim, 285, Liberdade - próximo à Estação de metrô São Joaquim.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Concurso de Haiku Nenpuku Sato

O Jornal Memai está realizando o Concurso de Haiku Nenpuku Sato. As regras são as tradicionais, como métrica 5/7/5 e a utilização do kigô (palavra de estação). Aqueles que desejarem participar, podem fazê-lo até 1 de maio do corrente. Maiores informações veja www.jornalmemai.com.br

Feira de Livros

Acontece a III Feira de Livros da Escola de Artes, Ciências e Humanidades – EACH – USP, nos dias 13, 14 e 15 de abril, das 9 às 21hs no vão livre dos auditórios e da biblioteca do campus USP Leste. Mais de 70 editoras se farão presentes, com vendas bem abaixo do preço de mercado, chegando a 50% de desconto. Entre os participantes estão a Edusp, Editora da Unesp, Martins Fontes, Editora 34, Paz e Terra, Imprensa Oficial, Papirus, Cosac Naify e Hucitec.

Para se chegar ao local, tomar o metrô e descer na Estação Brás; de lá fazer a conexão de trem CPTM para Calmon Vianna, conhecida também por linha Safira. Menos de 15 minutos depois do embarque no Brás chegará à Estação USP Leste. Da estação pode-se ver onde localiza-se a feira.